A Justiça Eleitoral e a solidariedade "fake" com as mulheres
03/10/2021 às 06:41 Ler na área do assinanteO dinheiro do contribuinte está sendo usado para pagar a difusão em emissoras de rádio de uma peça publicitária da Justiça Eleitoral que visa sobretudo a "fazer a cabeça" do eleitorado feminino.
É uma voz de mulher que fala:
"A violência política de gênero acontece quando uma mulher eleita não está segura nem mesmo no plenário, quando o apoio do partido nunca vem, quando somos julgadas e atacadas pela nossa imagem. Chega! É hora de ocupar o nosso lugar. Mais mulheres na política! Sem violência de gênero! A gente pode, o Brasil precisa! Justiça Eleitoral, a justiça da democracia!"
O que ela pede é "mais mulheres na política", isto é, mais mulheres no poder; não pede "mais mulheres politicamente esclarecidas". Só faltou dizer "temos direito a fazer as mesmas porcarias dos homens".
Para decifrar o que está sendo veiculado, convém examinar três dimensões do discurso, aquilo que Aristóteles aponta como "os três pilares da retórica": logos, pathos e ethos.
Logos é a situação alegada, é a premissa da qual parte o argumento. O problema é que o logos pode mostrar-se verdadeiro, distorcido ou totalmente falso, conforme o interesse do freguês.
É claro que o feminino ainda é encarado com preconceito (inclusive por muitas mulheres). O erro é falar como se estivéssemos no século XIX.
Com efeito, a propaganda quer plantar na mente do ouvinte a falsa ideia de que, para mulheres com mandato político, é um padrão o constrangimento, a vulnerabilidade, inclusive quando estão em plenário, e a falta de apoio até do partido pelo qual se elegeram.
O texto diz "Chega! (...) Mais mulheres na política! Sem violência de gênero!", como se fosse uma constante a violência contra mulheres com mandato político. Quem lembra um só caso? Efetivamente, não é um padrão.
Fácil é lembrar o caso da senadora que se impôs fisicamente para arrancar uma pasta das mãos de um colega (01/02/2019); e o do grupo de deputadas e senadoras que, sabendo-se intocável, invadiu o plenário do Senado para interditar a mesa da presidência e impedir na marra uma votação (11/07/2017).
O segundo aspecto é pathos, valores e sentimentos explícitos ou insinuados no discurso: o dramatúrgico tom de vítima com que o texto é lido no rádio incita especialmente o eleitorado feminino a ter "solidariedade" e a fazer "justiça" votando em mulheres.
O terceiro elemento é ethos, isto é, credibilidade e confiança para convencer o ouvinte: "Justiça Eleitoral, a justiça da democracia!"
Caspita! Quem vai por em dúvida a honorabilidade desse poder?
Não se trata de adivinhar o fluxo de consciência de quem mandou difundir essa propaganda nem o de quem a elaborou, mas de analisar o fenômeno.
Afinada pelo diapasão do "vitimismo", o texto distorce a realidade, surfa na onda do "politicamente correto" e propõe uma solução de ilusória defesa das mulheres.
Se excluído o feminino, não há melhorias sociais. Porém, a participação efetiva do feminino só se dá com a presença de mulheres esclarecidas, honestas, equilibradas e atuantes, premissa ignorada na tal propaganda.
Acaso a política de hoje está melhor que a do passado? Será que a classe política ficou mais confiável? Não e não! No entanto, nunca houve tantas mulheres na política como atualmente, prova de que, para as mudanças desejadas, não basta quantidade, tem que ter qualidade.
E o que esse blá-blá-blá oficial faz é massificar uma nova e maliciosa categoria semântica, a "violência política de gênero", um "conceito líquido" (como diria Bauman) que há pouco foi enfiado na lei 14.192/2021 e virou mais um instrumento gerador de insegurança jurídica.
É uma aposta em dois desvios éticos: egoísmo e omissão.
Nem todas as mulheres se iludem com essa farsa. Mas haverá as que, olhando com olhos egoístas, veem nela alguma forma de vantagem. Haverá também homens e mulheres que, embora percebendo o engodo mas temendo o politicamente correto, ficam em silêncio e se omitem.
Precisamos, sim, evoluir no quesito "respeito às diferenças", o que nada tem a ver com a rivalidade rancorosa das bandeiras identitárias, que dividem a sociedade, jogam uns contra outros e pavimentam o caminho para a implantação de regimes totalitários.
O comportamento abusivo não depende de sexo, idade, cor da pele, escolaridade nem religião, sendo um erro estabelecer como critério de escolha eleitoral sexo, idade, cor da pele, escolaridade ou religião.
Apesar disso, a Justiça Eleitoral, em vez de estimular as mulheres a buscarem um conhecimento esclarecido e responsável da política, opta por oferecer-lhes o limitante papel de vítima e propor-lhes que, à semelhança das condutas masculinas, tomem o poder.
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Renato Sant'Ana
Advogado e psicólogo. E-mail do autor: sentinela.rs@uol.com.br