Após concluídas, pelo Congresso Nacional, as reformas Fiscal e Administrativa, ora em curso – que se somam à Previdenciária, já efetivada –, surge o momento de a nação brasileira começar a reivindicar, com a contundência das ruas, para a próxima legislatura (que iniciará em 2023), aquela Política, em vista da alteração radical e urgente das regras que regem, atualmente, os processos de escolha dos representantes da sociedade aos principais espaços decisórios do Estado federativo.
Não se trata de uma questão trivial, na medida em que incide, diretamente, na cultura corporativa (e antirrepublicana) já cimentada dos partidos políticos e na camada de proteção dos privilégios desfrutados pela classe política, a quem foi outorgado, pela Constituição de 1988, poder desproporcional sobre a Presidência da República, favorecendo, nos termos da lei, a prevalência do império dos conchavos e da chantagem – conforme os interesses cabulosos de ocasião.
Parte substantiva dos problemas vivenciados, diuturnamente, pelos cidadãos brasileiros – e fonte primordial dos impasses e crises sistemáticas que conspiram em favor do atraso e da paralisia – decorrem, diretamente, do modelo de regramento que, em bases institucionais já obsoletas, define a forma de triagem dos delegados do povo e demais autoridades públicas alçados à responsabilidade de comandar os destinos do país – a exemplo das Casas Legislativas, das Cortes Superiores e das instâncias máximas do Poder Executivo.
As estruturas (ordenamentos organizacionais), por certo, não garantem, de per se, a qualidade dos sujeitos que as ocupam e operacionalizam, mas podem influenciar, positivamente ou não – conforme o rigor e a transparência dos correspondentes parâmetros de seletividade e monitoramento –, a designação, comportamento e desempenho dos diversos agentes, minimizando as disfunções de costume.
Os padrões institucionais (leis, normas, regulamentos, processos de seleção e avaliação, etc.) definem, em boa medida, o caráter e o perfil da gestão pública, cuja engenharia condiciona a ambientação e a estirpe das ações estatais, em todos os campos e domínios de sua manifestação e expressão.
Boas regras impulsionam, tendencialmente, bons mandatários e, consequentemente, boas práticas e saudáveis realizações. O reverso, por suposto, o efeito contrário – sobretudo se urdido para favorecer, disfarçadamente, o corporativismo e a corrupção, ancorados, em “última instância” (graças a um Judiciário faccioso), na presumível impunidade.
Não é ao acaso, pois, que a ampla maioria dos políticos que ocupam as cadeiras do Parlamento brasileiro e a quase totalidade dos juízes guindados às Cortes Superiores de Justiça são constituídas por personalidades corroídas e biltres, descompromissadas com as causas populares e o interesse coletivo e sequestradoras das instituições em prol de suas inescrupulosas e egocêntricas ambições – e assim continuará a sê-lo enquanto perdurarem as regras vigentes.
Se são os indivíduos, com suas aptidões, mentalidade e caráter, que movem as estruturas (instituições), balizando suas atuações, em contrapartida são essas que amoldam, a seu turno, com suas prescrições configurativas, os seus ocupantes – num permanente jogo dialético de reciprocidade causa-efeito.
Ainda que a ideia de “república” seja, por natureza, uma utopia – no sentido da impossibilidade de sua realização in totum –, ela cumpre, todavia, o papel civilizador de motivação e sinalização do caminho a ser perseguido por uma sociedade na busca perene (e sempre inacabada) da realização do bem comum – traduzido no predomínio da “vontade geral” sobre os préstimos mais particulares e egoístas de indivíduos e corporações.
Tal crença permite conceber e projetar, idealmente, a política como a arte, por excelência, do serviço comunitário (por que não?!), espelhada na máxima doação (individual e coletiva) à nobre e magnânima causa pública (da coletividade em geral) – ao invés de mero artifício a serviço do oportunismo, da extorsão e da vigarice.
Assim, a utopia republicana deve ser a premissa, o valor, o fulgor de toda arquitetura institucional comprometida com o resgate do interesse geral nos meandros das arenas decisórias do Estado, desde o arranjo de sua composição diretiva (regramentos criteriosos de escolha dos dirigentes) aos condicionantes sobredeterminantes da atuação desses mesmos agentes, por meio de eficazes e transparentes mecanismos de controle social.
Para tal, importa, como pressuposto, o enfrentamento de uma questão crucial e inescapável, a servir de referência e guia para toda ação instituinte, nessa perspectiva, projetada: qual a melhor estratégia (padrão institucional) a ser implementada(o) com o propósito de se garantir, minimamente, que pessoas ética e profissionalmente qualificadas sejam meritoriamente selecionadas para as funções públicas (conforme as finalidades em cada caso), evitando-se (ou minorando-se) o uso degenerado do poder para fins não-republicanos?
Eis, aqui, o fundamento de toda reforma política que vise, honestamente, à conquista (ao menos por aproximação) da referida utopia – ainda que por etapas sucessivas e progressos cumulativos.
Nesse diapasão, no encalço de tamanha façanha, vale rastrear quais seriam os principais itens a merecer focagem numa pretensa reforma política em âmbito nacional, capazes de patrocinar transformações efetivas na dinâmica do poder em favor do conjunto da sociedade (satisfação da “vontade geral”), ao mesmo tempo que impeditivos (ou inibidores) da captura do Estado por astuciosas e sabotadoras oligarquias corporativas de ocasião – como ocorre nos dias hoje (e praxe na tradição).
Em termos propositivos, NOVE, pelo menos, deveriam ser os focos prioritários de mudança, indistintamente benéficos ao aperfeiçoamento republicano do sistema político nacional – conforme justificado mais abaixo – e cujos indicativos ressoam padrões internacionais já adotados e experimentados (ao menos parcialmente) por inúmeros regimes democráticos do Ocidente, com resultados extremamente positivos e promissores, a saber:
1 – FIM DO VOTO OBRIGATÓRIO
2 – FIM DO FINANCIAMENTO PÚBLICO DE PARTIDOS E CAMPANHAS
3 – VOTO DISTRITAL
4 – FIM DAS COLIGAÇÕES POLÍTICAS PARA FINS ELEITORAIS
5 – FIM DO VOTO PROPORCIONAL
6 – FIM DA REELEIÇÃO PARA CARGOS EXECUTIVOS
7 – DELIMITAÇÃO MÁXIMA DE MANDATOS PARA CARGOS LEGISLATIVOS 8 – APROVAÇÃO DAS CANDIDATURAS AVULSAS
9 – CRITÉRIOS RIGOROSOS PARA A ESCOLHA DE JUÍZES ÀS CORTES SUPERIORES
O item 1 determina o fim da tutela do Estado sobre a liberdade de iniciativa dos indivíduos (o Estado não pode ser o “curador” da sociedade!).
O item 2 obriga a que todos os partidos se sustentem por adesão espontânea e voluntária de seus apoiadores e correligionários – e não mais por imposto obrigatório e postiço, imperialmente debitado do conjunto da sociedade para as corporações partidárias (agremiações artificiais e pouco representativas tendem, neste caso, a desaparecer).
O 3 circunscreve toda candidatura ao correspondente (e mais restrito) espaço territorial de atuação do pretendente, facilitando, posteriormente, o seu controle pelos respectivos eleitores.
O 4 impede os acordos eleitoreiros e oportunistas entre agremiações, remetendo a legitimidade das coligações apenas para o exercício efetivo dos mandatos (e não previamente).
O 5 garante que os eleitos sejam justo aqueles que obtiverem a maioria preferencial e majoritária dos votos – e não mais os “puxados” pelos votos de outrem (tendentes à máxima “fidelidade partidária” e mínima deferência aos anseios populares).
O 6 interdita (ou minora) a ação executiva dos governantes unicamente em função de sua permanência prolongada no poder (podendo caber, neste caso, a fixação do mandato governativo em cinco anos).
O 7 restringe o prolongamento indefinido das trajetórias políticas individuais – ficando a sugestão de admissão, no máximo, de quatro mandatos (subsequentes ou intercalados) –, coibindo-se, assim, o pernicioso e daninho “carreirismo político” (política não pode ser profissão!) e impelindo, em consequência, os partidos à renovação permanente de seus quadros e lideranças (ao invés do costumeiro e imorredouro “caciquismo”).
O 8 permite que cidadãos não identificados com nenhuma corporação partidária (por razões programáticas ou de constrangimento circunstancial) pudessem vir a se candidatar, impedindo, ao mesmo tempo, que os partidos políticos detenham o monopólio do espaço político.
Por fim, o item 9 – importantíssimo! – remodela os cânones de escolha dos ministros das Cortes Superiores do Poder Judiciário, transferindo tal função dos Poderes Executivo e Legislativo (como ocorre hoje) para a esfera interpares da própria Magistratura (o que refrearia a influência política na seleção dos juízes), com o estabelecimento de uma maior e mais isenta autonomia de atuação dos Tribunais, além de critérios mais rigorosos e meritocráticos de seleção de seus respectivos togados: notório saber; competência jurídica comprovada; experiência acumulada (mínimo de 30 anos na função); faixa etária a partir dos 60 anos (o que reduz as “tentações” do uso da toga para benefícios pessoais futuros e a ilusão do sentimento de “deidade”); reputação ilibada (por reconhecimento social e entre pares); mandato máximo de dez anos (com salutar limitação ao exercício da função).
São todas propostas que têm em mira o interesse mais amplo e legítimo da sociedade no seu conjunto (res publica), em contraste àquele mais restrito e espúrio das corporações e seus asseclas – sempre sujeito a motivações pouco (ou nada) magnificentes.
A sociedade brasileira precisa compreender, de uma vez por todas, que o seu futuro depende muito mais da qualidade republicana de suas instituições – da arquitetura e engenharia de sua composição e funcionamento – que dos dotes individuais – sempre ocasionais e passageiros (quando não falsificados) – de seus políticos.
Que não existe, enfim – e nunca existirá –, “salvador da pátria”; mas que a Pátria é uma construção coletiva e permanente de todos no tempo, respaldada nas virtudes e qualificação educacional do conjunto dos compatrícios e na solidez e justeza cívica de suas instituições.
Alex Fiúza de Mello. Professor Titular (aposentado) de Ciência Política da Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Ciência Política (UFMG) e Doutor em Ciências Sociais (UNICAMP), com Pós-doutorado em Paris (EHESS) e em Madrid (Cátedra UNESCO/Universidade Politécnica). Reitor da UFPA (2001-2009), membro do Conselho Nacional de Educação (2004-2008) e Secretário de Ciência e Tecnologia do Estado do Pará (2011-2018).
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