O ovo da serpente

16/07/2016 às 18:34 Ler na área do assinante

Na primeira noite, eles se aproximam e colhem uma flor do nosso jardim, E não dizemos nada.

Na segunda noite, já não se escondem, pisam nas flores, matam nosso cão. E não dizemos nada.

Até que um dia, o mais frágil deles, entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E porque não dissemos nada, já não podemos dizer nada. (Vladimir Maiakovisk) 

Cada ovo de serpente é protegido por uma membrana, onde se desenvolve o embrião de uma nova serpente. Através desta membrana, que tem alguma transparência, você pode acompanhar o crescimento desse réptil. É um ovo como tantos outros, aparentemente inofensivo, mas onde germina uma perigosa criatura que pode picar e destilar o seu veneno.

Aproveitando esta alegoria, o cineasta Ingmar Bergman produziu o belíssimo filme “O ovo da serpente”, situando simbolicamente o olhar em Berlim no ano de 1923, num momento pós Primeira Guerra Mundial, quando ocorreu o refazer da sociedade alemã destroçada. O ambiente de fracasso com a perda da guerra fez germinar as terríveis sementes da política nazista.

Mesmo assistindo à formação de um monstro, como a serpente dentro do ovo, a sociedade germânica viveu frágeis ventos democráticos e uma baita crise econômica nesse período entre as duas guerras mundiais. O clima de liberalidade política permitiu o surgimento de organizações marcadas pela intolerância, por preconceito social e o aparecimento de um líder alucinado que galvanizava multidões insatisfeitas: Adolf Hitler. Desenhava-se dessa forma a conivência com a violência, o ódio racial e o afloramento de regimes nazifascistas que levou o mundo todo a uma guerra insana, com milhões de vítimas.

Esse histórico mostra que uma sociedade democrática deve se fortalecer e não pode conviver ou permitir manifestações de intolerância política, social, cultural, racial ou religiosa, mesmo que, aparentemente, pareça que se está ferindo direitos do cidadão. Pelo contrário, a defesa da sociedade implica em não dar espaços aos rasgos de intolerância e ao ódio, mesmo que sejam pontuais. São venenos que se alastram sob o manto da impunidade, ou da omissão de uma sociedade que não quer se envolver, ou finge não ver o que é mais cômodo, e não enfrenta situações, gestos ou episódios que ferem a liberdade de escolher e de viver dos outros.

A sociedade brasileira tem sido ferida em diversos momentos por inconcebíveis atos de intolerância e nem sempre se produz o repúdio esperado dos cidadãos de respeito e bom senso. Parece até que a violência, quando não nos atinge diretamente, não nos dizem respeito. É na verdade, uma atitude de indiferença, quando se deve combater as transgressões com solidariedade, humanismo e justiça social.

Lembro de um caso emblemático, ocorrido alguns anos atrás, de violência motivada pela intolerância étnica com o ato inconsequente e criminoso de jovens de classe média que atiraram fogo no índio Galdino. Apesar da repercussão internacional, pouco se fez a respeito. Prevaleceu a sensação de impunidade e um gosto amargo na boca das pessoas de bem. Contudo, a violência motivada por preconceito, de forma recorrente, polvilha o noticiário cotidiano da imprensa com a divulgação de agressões gratuitas a professores, de meninas contra suas próprias colegas, de grupos neonazistas contra gays, de atitudes racistas, contra mulheres, crianças e idosos, intolerância religiosa e outros.     Isto, com certeza, reflete uma sociedade enfraquecida e doente. E todo cuidado é pouco.

Agora, a imprensa noticiou a morte a pauladas de um jovem universitário no campus da UERJ por motivos homofóbicos. Se isso aconteceu numa universidade, onde deve haver a convivência civilizada e a pluralidade de ideias e de ideais, o que imaginar o que acontece além de seus muros, por toda a cidade e em todo o país?

Essas serpentes estão vivas e crescendo dentro dos ovos, mas não podem nascer.

Valmir Batista Corrêa 

Valmir Batista Corrêa

É professor titular aposentado de História do Brasil da UFMS, com mestrado e doutorado pela USP. Pesquisador de História Regional, tem uma vasta produção historiográfica. É sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de MT, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de MS e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.

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