Tombar não é destruir

09/07/2016 às 13:04 Ler na área do assinante

O ato de tombar um bem público ou particular provoca muita polêmica. Mesmo com a facilidade de acesso às informações em todos os níveis, tem proprietário que ainda pensa que tombar um imóvel por órgão público é perder o seu direito de propriedade.

Para defender os seus direitos deixam seus imóveis deteriorarem-se (acontece com frequência) para justificar a sua derrubada na “calada da noite” como se diz por aí, como aconteceu com uma bela fachada comercial da rua 14 de julho, região central de Campo Grande (MS).

Creio que cabe aos órgãos culturais e de preservação do patrimônio histórico fazer campanhas de esclarecimento para que a população saiba da importância do tombamento de bens histórico-culturais, que fazem parte do passado/presente de um povo. Ora, isso leva com certeza ao apoio e à parceria para o entendimento do significado coletivo de seu passado e de sua história.

Na década de 70 do século passado, em Corumbá (MS), o desconhecimento da importância de tombar imóveis históricos significava a perda do imóvel. Os proprietários de casas e armazéns antigos não entendiam porque algumas pessoas defendiam a preservação desses imóveis velhos e, aparentemente, sem funções práticas e econômicas. Derrubar casas antigas e construir novas significava modernização e progresso. Este equívoco provocou uma reação negativa contra alguns jovens professores da Universidade Estadual (hoje federal) que defendiam o tombamento e a preservação do casario do porto. O caso mais emblemático foi a luta inglória pela defesa de um prédio, o mais significativo e belo de toda fronteira oeste brasileira. Era um imenso sobrado, que foi casa comercial, intendência municipal e correio. O seu proprietário, indignado com o que considerou uma intromissão indevida no seu direito de propriedade particular, denunciou os professores como ‘comunistas’ que defendiam o atraso e, por isso, eram inimigos da cidade. E, com uma violência incomum fez um voo rasante sobre a rua Delamare em seu pequeno avião, dando tiros no ar, além de providenciar a rápida demolição do andar superior do prédio, que tinha paredes de pedra calcária com mais de 60 cm de largura. Para se ter uma ideia de sua dimensão, o tapume ao redor da obra foi montado com mais de 60 enormes portas de madeira entalhada, arrancadas do mesmo prédio e usadas como sucata.

Após a derrubada da parte mais interessante e diferenciada do prédio, o casarão tornou-se um prédio sem nenhum estilo, um caixote de péssimo gosto. Este é o símbolo da ignorância e da prepotência que desprezava e desvaloriza a história corumbaense.    Hoje, a ideia sobre um tombamento de imóvel particular tem merecido maior esclarecimento como um bem que, tendo importância histórica e/ou cultural, pertence também à comunidade onde se insere. O proprietário, ao contrário do que se pensa, tem sua propriedade valorizada por essa característica.

Na época do governo Wilson Martins, participei com os professores Lúcia Salsa Corrêa e Gilberto Luiz Alves da elaboração de um documento, publicado pelo Senado Federal (com os direitos autorais doados ao Estado), que serviu de subsídio para o tombamento do casario do porto de Corumbá. Hoje, felizmente, o pensamento mudou e muitos prédios do porto e de seu entorno estão preservados e restaurados.

Tempos atrás, aqui na capital, o Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul deu dois pareceres defendendo o Obelisco dos altos da av. Afonso Pena e a preservação das frondosas árvores plantadas nessa principal via da cidade. Além disso, a discussão sobre preservar e tombar bens imóveis está evoluindo para novas abordagens. Antes, somente se discutia o tombamento de bens anteriores a meados do século XIX. Hoje não. Já existe um consenso de que imóveis (e também bens imateriais e imateriais) mais recentes, mas com alto significado para a formação sociocultural de uma população, precisam ser preservados e a sua destruição é uma perda irreparável para todos. Foi assim que se transformou em polêmica a proposta e tombamento da bela fachada do Rádio Clube Cidade da capital.

Em Três Lagoas, a doutora Maria Celma Borges, com outros professores da Universidade Federal lutaram pelo tombamento do antigo fórum da cidade que, com a construção de um novo prédio, corria o risco de ser derrubado e transformado em estacionamento. O prédio não era muito antigo, como a própria cidade que surgiu com a Estrada de Ferro, mas foi parte importante do cotidiano dos três-lagoenses por várias décadas.  O que importa agora é o significado que os bens têm para uma cidade ou logradouro e a noção de pertencimento histórico e cultural das pessoas que ali vivem.

Tempos atrás veio à tona uma proposta “de jerico” aqui em Campo Grande para derrubar um prédio projetado em 1958 pelo engenheiro Gabriel do Carmo Jabour, construído na década seguinte para ser um albergue noturno. Situado na avenida Afonso Pena, pelo descaso das autoridades responsáveis o prédio foi-se deteriorando, passando a dar abrigo a desocupados, traficantes e viciados. Na época, técnicos declararam que não compensava restaurá-lo por suas estruturas e ferragens estarem comprometidas e expostas. Pura bobagem, pois com tecnologia desenvolvida hoje tudo é possível.

Esse caso me fez lembrar de Cuiabá, quando engenheiros e o bispo local justificaram a destruição da bela catedral do século XVIII, afirmando que suas paredes estavam prestes a ruir. No entanto essas paredes, com mais de um metro de largura, somente foram derrubadas à base de dinamite. Esses criminosos contra a cultura cuiabana, técnicos e religiosos devem estar expiando seus pecados no calor daquela cidade. Mas, a sua população sofreu uma grande irreparável perda.

As cidades e os logradouros podem parecer iguais em todos os lugares do mundo. O que os diferencia, no entanto, é a sua história que é sempre única. Seus bens culturais são os testemunhos vivos dessa identidade, por mais “velhos” que pareçam.

Valmir Batista Corrêa 

Valmir Batista Corrêa

É professor titular aposentado de História do Brasil da UFMS, com mestrado e doutorado pela USP. Pesquisador de História Regional, tem uma vasta produção historiográfica. É sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de MT, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de MS e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.

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