Democracia raptada

24/07/2021 às 09:07 Ler na área do assinante

Brasil: 1985 – 2021.

Primeiro, pretendeu-se romper com o autoritarismo da farda em favor da instauração do republicanismo democrático, em que a soberania (ao menos teoricamente) seria devolvida ao povo. Surge, então, a Nova República (1985), como consequência do movimento “Diretas Já!” e do fim do regime militar. Comemora-se, em todo o país, a “democracia restaurada”!

Em seguida, com promulgação da Carta de 1988 – denominada de “Constituição Cidadã” (plena de direitos e carente de deveres) –, e na intenção de impedir-se, em princípio (ou por trauma?), novas sanhas totalitárias no exercício do mando governativo, buscou-se reduzir ao máximo o poder do Presidente da República em favor do Parlamento (Congresso Nacional), inviabilizando, porém, em consequência, o presidencialismo como forma eficiente de Governo. E tudo ficou atravancado!

Em decorrência da concentração inédita de força no Parlamento, transforma-se a Presidência da República (principal instituição majoritária de representação popular) em refém de Deputados e Senadores, inaugurando-se, na prática, um regime político que, não por acaso, veio a ser cunhado pelo sociólogo Sérgio Abranches (1988) com o eufemismo de “presidencialismo de coalização”, isto é, de governabilidade e governança totalmente dependentes do Congresso Nacional – espécie de “parlamentarismo” manco e disfarçado.

Na medida em que, diante do referido quadro, os partidos políticos passam a assumir, integralmente, o comando do país, estes, de meio ou mero instrumento (de representação legítima das aspirações sociais), tornam-se fim em si mesmos (de seus ilegítimos objetivos corporativos), metamorfoseando-se, então, a pretendida democracia republicana (da soberania do interesse popular) em oligarquia corporativa (do domínio das corporações partidárias).

Grupos de interesse (dentre esses, os mais cabulosos!), assessorados por lobistas de plantão, capturam, enfim, o Estado para fins privados e escusos, subordinando-o ao seu vampiresco e insaciável modus operandi. O Parlamento se transforma em balcão de negócios – “naturalizando-se” disfarçadamente, a partir daí, sob o pretexto da busca da “governabilidade”, a “política” do “toma lá, dá cá”. Convertem-se as agremiações partidárias em organizações criminosas (de oportunistas e corruptos). Entra em colapso a pretendida “república”.

O resultado deletério de toda essa trama é fartamente conhecido: Mensalão, Petrolão, desvio de recursos públicos de estatais, do BNDES, de fundos de pensão, superfaturamentos, “pixulecos”, dinheiro na cueca, em apartamentos, em paraísos fiscais – etc., etc. etc. Radica-se, assim, o “absolutismo extorsivo” da cleptocracia oligárquica por sobre a carcaça proscrita da “Constituição Cidadã”. Morre, de vez (ou revela-se?), a “Nova República”!

Mas a história não termina aí. Ao contrário: ela se entesa e se estira. Pois sobre o sepulcro da Nova República, ao contrário de germinar o esperado lodo e o pretendido alheamento, ressurgem movimentos de protesto no seio da sociedade civil, mobilizados pelas redes sociais, contestando tanto roubo, tanta violência, tanta esbórnia e hipocrisia por parte do establishment, a ponto de surpreendê-lo nas eleições de 2018, quando é eleito, em consequência de tamanho mal-estar, um inesperado (e menosprezado) outsider, capitão da reserva do Exército e inexpressivo deputado do “baixo clero”, de nome Jair Bolsonaro, que veio a encarnar, em sua figura circunstancialmente mitificada, as aspirações populares mais recônditas até então, pelas elites, preteridas. E tudo ficou “bagunçado”!

Sob a sua conturbada regência, o Congresso restou desmoralizado. Os partidos que dominavam a Nova República (PT, PSDB, PMDB), encolhidos. A grande mídia, sem a caução do dinheiro público, desacreditada. Toda a tradicional (e lucrativa) “dinâmica do poder”, nas suas “coalizões” de costume, alquebrada.

Nada mais seria como dantes, no quartel de Abrantes.

Os convencionais inquilinos do poder, desalojados em seus tradicionais currais de malandragem e mandonismo, urraram de cólera e “indignação”, deplorando o cenário circundante. Insustentável, seria – ante os “compromissos” assumidos e a costumeira sugação do erário –, a seca de pecúnias projetada no horizonte.

E logo veio a reação!

Antigos “adversários” na arena política rapidamente se uniram em favor da restauração da “normalidade” de antanho. Formaram-se sociedades abertas – e secretas – contra o “petulante” (e “tosco”) usurpador do trono. Passistas, palhaços, artistas, intelectuais e jornalistas, igualmente incomodados com a privação de sua costumeira (e rendosa) “zona de conforto”, passaram a encenar dramas e narrativas com o mesmo e único propósito: a deposição (a qualquer custo) do “tirano” e “genocida” presidente, não importa se ali conduzido pela ampla maioria do voto popular ou lastreado de legitimidade – dane-se a democracia!

E para completar, surge, nesse impetuoso clima de revanche, um extemporâneo e inesperado ator em cena, na condição de inaudito e supremo esteio da “resistência” (a despeito das restrições constitucionais): o STF. Sim, justo os monarcas do manto preto, que passam a agir em favor da cleptocracia ferida, garantindo-lhe, “em última instância”, a reparação dos danos imputados pelo atrevido e impertinente “capitão”. De juízes, Suas Excelências se transformam, assim, em ativistas políticos, lobistas superlativos, avalistas do crime, traindo, indecorosamente, a nobre função da magistratura e violando, arbitrariamente, o já carcomido “Estado de Direito”.

Opera-se, então, uma segunda metamorfose no sistema político nacional: o núcleo do poder, antes concentrado no Parlamento, agora desloca-se para a Suprema Corte; com o agravante de que ele é capturado por atores sem qualquer autorização popular para exercê-lo, de vez que, para isso, nem eleitos foram. É o fim da democracia!

As eleições se transmutam numa achincalhante e ignóbil farsa; em mera imposturice; sardônica pantomima. Os novos “donos do poder”, ilicitamente instalados, exercem-no, dessarte, incólumes, do alto de sua empáfia, insubmissos (e insensíveis) à vontade popular, como tiranos inatingíveis e inimputáveis – protegidos, inclusive, pelo controle exclusivo e absoluto de um sistema eleitoral obscuro e inauditável, inteiramente à mercê de seus de interesses suspeitosos e psicopáticos desvarios.

À histórica ditadura da farda sobrevém, assim, aquela da toga; a pior e mais aterradora de todas – como alertava Rui Barbosa –, já que contra ela não há a quem recorrer. Uma ameaça que, não obstante a gravidade intrínseca, passa a ser cinicamente saudada e apoiada por todos aqueles que, em passado não muito distante, em nome da “liberdade” (sic!), adoravam cantar, em tom de protesto, juntamente com o Chico, Apesar de Você.

Impõe-se, desse modo, a sem-vergonhice do “progressismo” de fachada. Alastra-se o reino da desfaçatez, da hipocrisia e da fanfarra!

Eis o resumo de toda a “ópera” – e suas malfadadas encenações de picadeiro.

O resto, todos já sabem. A guerra brasileira continua. Os embates que se seguirão definirão o fecho provisório do inacabado enredo – e a trajetória e destino dos distintos personagens do inextricável script. República ou barbárie. Liberdade ou escravidão. Eis a questão, na ordem do dia! A verdadeira e inescapável encruzilhada!

A opção da direção a ser seguida no roteiro final, entretanto, ainda é uma misteriosa incógnita. Um epílogo em suspensão. Dependerá, por certo, da atuação e da afluência (maior ou menor) do povo no centro palco e da performance dos demais protagonistas, cotados militantes do tablado e da cena; enfim, do desempenho de todos e de cada um, em seus respectivos e específicos papéis.

Enquanto isso, na antecâmara do agitado espetáculo, a república continua amordaçada, e a democracia raptada.

Alex Fiúza de Mello. Professor Titular (aposentado) de Ciência Política da Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Ciência Política (UFMG) e Doutor em Ciências Sociais (UNICAMP), com Pós-doutorado em Paris (EHESS) e em Madrid (Cátedra UNESCO/Universidade Politécnica). Reitor da UFPA (2001-2009), membro do Conselho Nacional de Educação (2004-2008) e Secretário de Ciência e Tecnologia do Estado do Pará (2011-2018).

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