O vilipêndio da língua portuguesa: Prenúncio de nossa decadência intelectual e humana

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“O problema não é que Joãozinho não saiba ler. O problema não é sequer que Joãozinho não saiba pensar. O problema é que Joãozinho já não sabe o que é pensar; ele confunde pensar com sentir”. Thomas Sowell
“O ensino fundamental (...) terá a por objetivo a formação básica do cidadão, mediante I. O desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo; II. A compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamental a sociedade” (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996, Art. 32, incisos I e II)
“O progresso nos estudos depende da aquisição de conhecimentos básicos. Sem saber ler com compreensão, escrever corretamente e sem dominar conceitos básicos de matemática, a criança não conseguirá percorrer com êxito sua trajetória escolar nem terá igualdade de condições e de oportunidades para alcançar seu desenvolvimento pessoal e para contribuir com a sociedade” (Abraham Bragança de Vasconcellos Weintraub - Ex-Ministro da Educação na apresentação do caderno PNA, Plano Nacional de Educação, 2019).

No dia 05 de maio, foi celebrado o dia da língua portuguesa nos países lusófonos. No entanto, observei que a data passou, ao menos aqui no Brasil, quase desapercebida, como se já não houvesse o que celebrar. Na verdade, tal como tem ocorrido com outras datas importantes, as quais são imprescindíveis para que não percamos nossa identidade nacional, isto é, nosso, digamos, “espírito nacional” (e, mesmo, humano), ela foi simplesmente obliterada, segundo creio, intencionalmente, tal como vem ocorrendo com datas de celebração cristã.

E isso em virtude de hoje estar em andamento um projeto cujos objetivos envolvem a destruição do patriotismo (para fazer colapsarem os estados nação), o, digamos, “desenraizamento” das pessoas (para “arrancá-las” de suas bases – dos seus fundamentos, particularmente daqueles que nos trouxeram ao mundo civilizado), o emburrecimento e vitupério dos indivíduos (mediante degradação do ensino, da linguagem, por exemplo), etc.

Diante disso eu ontem me questionei: há, realmente, o que celebrar? Afinal, apesar de sua riqueza, complexidade e magnificência, nas últimas décadas a nossa língua vem sendo, tal como ocorre com a alta cultura em geral, vilipendiada de forma atroz.

Usarei como ponto de partida para minhas considerações uma situação a meu ver surreal ocorrida em 2011, noticiada amplamente na mídia à época, a qual se referia ao fato de o então ministro da educação ser simpático à ideia de “preconceito [relativismo] linguístico”.

Colocado de forma simplista, a ideia é a seguinte: se eu falar “a gente pega os livro”, sofrerei preconceito linguístico caso alguém me corrija. Sim, usar nossa língua vernácula pode nos tornar “preconceituosos” (assim como buscar pela resposta correta para uma equação matemática pode ser uma manifestação da supremacia branca).

Sendo professor no magistério “superior” já nessa época, lembro de essa ideia ser propalada amplamente na universidade, com muitos aderindo a mais essa pauta tipicamente de esquerda (observem que a esquerda sempre está à frente de ideias que possam nos levar ao colapso moral, cultural, cientifico, etc. Ou seja, é inerente à esquerda criar e fomentar ideias destinadas ao fracasso – o que escancara seu propósito).

A ideia era, como no caso de outras manifestações de estupidez já em voga naquele momento, ser “inclusivo”, como se a inclusão devesse ser sempre no sentido de não elevar o que está em condição inferior, mas de sempre rebaixar o superior (o que explica a decadência e desaparecimento da alta cultura – o que inclui a língua portuguesa e suas mais sublimes expressões, como as obras de Luís de Camões).

É interessante observar que, sob um relativismo abjeto, os “neo-bárbaros” pretendem fazer colapsar todos os nossos pilares civilizacionais: segundo eles, o conhecimento é relativo, a moral é relativa, a beleza é relativa, a natureza humana é relativa, etc. E, como não poderia faltar em sua agenda, o certo e o errado são relativos no que se refere, inclusive, à língua.

Nesse sentido, além de tal relativismo tornar irrelevantes as ideias de beleza, de justiça, de conhecimento, etc, ele ameaça nossa humanidade. Seguindo o “raciocínio” dos neo-bárbaros, se, em uma comunidade de vulnerabilidade social qualquer, os indivíduos falam de forma rudimentar, então essa fala deve ser respeitada, sem que lhes seja “imposta” a língua culta vigente. Corrigi-los seria, afinal de contas, um ato de preconceito. Em suma, a ideia é: que essas pessoas sejam mantidas na ignorância, condenadas à miséria!

Tal ideia, segundo vejo, é um crime de lesa humanidade. Primeiramente, porque limitar o avanço da compreensão linguística dessas pessoas as mantêm em uma perpétua situação de vulnerabilidade social e, mesmo, de escravidão.

Ou seja, impomos a essas pessoas uma espécie de fatalismo socioeconômico e cultural: elas estarão “destinadas” à miséria (em todos os sentidos, inclusive cultural). Desse modo, ainda que dotadas de uma capacidade cognitiva elevada, elas jamais serão devidamente capacitadas para ascenderem socialmente. Suas habilidades (cognitivas, morais, etc) simplesmente não florescerão.

Aliás, é digno de nota que a maioria dos “teóricos” desse relativismo mantêm seus filhos em boas escolas, as quais tentam promover a educação em um nível mais elevado, pois sabemos que, pelo menos ainda, os mais qualificados têm maiores probabilidades de ascenderem social e economicamente.

Em geral, algumas ideias vitimizam especialmente os mais vulneráveis, os quais são, em verdade, cobaias de experimentos macabros fadados ao fracasso. A exemplo do que ocorreu com outros experimentos, como na implementação de modelos socialistas (atentem para o caso mais recente próximo a nós, o da outrora pujante Argentina, atualmente um país em que quase metade da população já vive em estado de pobreza), os mais frágeis são sempre os mais lesados.

Além de aprisionar as pessoas em um estado fatalista de miséria, ideias como a de relativizar o valor da língua portuguesa coíbe a plena realização humana, ou, ainda, o florescimento humano.

Em verdade, nossos antepassados já haviam identificado a importância da linguagem ao criarem, por exemplo, as artes ditas “liberais”, ou seja, que libertavam as pessoas e as promoviam humanamente. Uma vez que a questão, aqui, é a língua, citemos o ‘Trivium’, o qual foi sistematizado ainda no medievo e abarcava três “artes”: Gramática (falar sem erros), Lógica (distinguir o verdadeiro do falso) e Retórica (persuadir).

Quando estamos usando o pensamento, seja quando lemos seja quando redigimos ou discursamos, estamos em alguma medida usando o ‘Trivium’. Escritores como William Shakespeare foram treinados no ‘Trivium’ e usaram-no amplamente na realização de suas obras. Antes disso o ‘Trivium’ era parte da formação durante o período “clássico” (especialmente até a renascença).

Historicamente, o mais antigo livro de gramática conhecido é o ‘Téchné grammatiké’, de Dionísio da Trácia (170-90 a.C.), o qual possui 15 páginas e apresenta a gramática grega. Ele serviu de base ao longo dos séculos posteriores para a elaboração de diversos textos gramaticais.

Com efeito, a gramática regula o uso de uma língua (aqui entendida como instrumento de comunicação formado por regras gramaticais que permitem que um grupo de sujeitos se compreenda mutuamente), oferecendo um padrão de escrita e de fala que leva em conta certos critérios, como tradição, bom senso, coerência e o exemplo dos escritores ditos “clássicos” (e eruditos).

De qualquer forma, tendo como base nossa natureza cognitiva (intelectiva – a qual nos caracteriza como humanos), devemos (enquanto sujeitos que escrevem, que leem, que falam e que escutam, isto é, que usam de sua racionalidade) ser guiados pelos mesmos princípios da gramática, da lógica e da retórica.

Animais expõem sua natureza reagindo instintivamente; nós o fazemos mediante a intelecção. Como colocado por John Henry Newman, em sua obra “The Idea of University” (1852), as “artes liberais” seriam “exercícios da mente, da razão, da reflexão”.

Nesse sentido, o estudante deve assimilar os fatos e reuni-los em uma unidade, analogicamente como uma planta reúne elementos do solo e os unifica para, então, florescer. Não se trata, pois, de apenas reunir fatos.

É preciso unificá-los, o que assegura o esclarecimento (e o auto aperfeiçoamento). Isso causa vigor à mente. A prepara para enfrentar outros desafios cognitivos. Quanto mais rica nossa linguagem, mais rico nosso pensamento. Há uma correlação entre avanço da linguagem e sofisticação de nossas atividades neuronais.

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Dessa maneira, as “artes liberais” não são consideradas isoladamente, mas em conjunto. O ‘Trivium’, por exemplo, ao englobar conjuntamente gramática, lógica e retórica, envolve áreas como oratória, literatura, filosofia, história, etc. E cabe notar que a mente se expressa mediante a linguagem. Se não somos capazes de articular a linguagem (eis a importância do ‘Trivium’), dificilmente teremos condições de nos expressarmos e de compreendermos o que é expresso mediante a linguagem.

Dessa maneira, o ‘Trivium’ funciona como um eficiente exercício para a mente. Esse exercício resulta em progresso humano e “cultura”, compreendida aqui naquele sentido proposto pelo poeta inglês Matthew Arnold, a saber, como “sweetness and light”, isto é, como “o conhecimento de nós mesmos [de nossa mente] e do mundo [matéria]” (“Culture and Anarchy”).

Não obstante, tal como ocorre com os demais “bens humanos fundamentais”, como arte, conhecimento, vida, etc, nossa língua pátria está sempre em risco diante da barbárie. Isso fica claro quando surgem ideias como a do já referido “preconceito linguístico” e a mais recente “linguagem neutra”, expressões não apenas de estultice, mas de um relativismo que desafortunadamente ameaça nossa cultura, tornando irrelevantes nossos valores básicos e ameaçando nossa humanidade.

Afinal, tais “bens” surgiram espontaneamente e foram sendo, com o passar do tempo, protegidos por regras, instituições, etc. Nossos antepassados entenderam, a partir da tradição greco-romana, que a plena realização humana envolvia, necessariamente, uma compreensão da linguagem, dado que o enriquecimento da linguagem sempre expressou um avanço da capacidade cognitiva e da humanidade. Sem falar no seu papel na socialização, algo que é, também, parte da natureza humana e dos “bens humanos fundamentais”.

Indícios dos danos causados pelos neo-bárbaros são, hoje, evidentes, dentre os quais estão, por exemplo:

1. O problema de nossos estudantes não conseguirem definir adequadamente um conceito, de não conseguirem estabelecer distinções e de não conseguirem oferecer um argumento bem estruturado na defesa de um ponto;

2. O problema de nossos estudantes não conseguirem estabelecer conexões entre o que aprendem, isto é, de não serem capazes de dar unidade ao conhecimento;

3. O problema de nossos estudantes rapidamente esquecerem o que aprendem e de terem pouco interesse em saber mais.

Esses são apenas alguns dos problemas particularmente enfrentados em instituições de ensino, mesmo “superior”. Mas penso que ideias impostas artificialmente, como as de “preconceito linguístico” e “linguagem neutra”, prenunciam um futuro sombrio, no qual talvez já nem falemos mais. Dados os modismos que estão surgindo, ou resgatamos nossa cultura e nossa língua, ou em breve estaremos grunhindo (muitos, aliás, já estão).

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