A forma como se desenvolve uma eleição não é questão instrumental, meramente técnica. É parte essencial do rito democrático.
No final dos anos 80 e início dos 90, fiscalizei locais de votação e mesas de apuração de votos. Mobilizavam-se milhões de pessoas em todo o país para operarem as sessões eleitorais e a contagem. Outro tanto era indicado pelos partidos para as tarefas de fiscalização. Aquela trabalheira chancelava o pleito, criava um ambiente de transparência e responsabilidade, envolvia partidos e seus filiados. Dava visibilidade ao valor de cada sufrágio.
Hoje o ato eleitoral é estéril. A votação é blindada. O eleitor sabe o que votou, mas não sabe se o que votou foi parar dentro da urna. A fiscalização ficou impossível e as auditorias são meramente simbólicas. Pasteurizaram nosso voto. Jogaram-no numa batedeira eletrônica.
O aprimoramento desse quadro tem encontrado barreira na atitude dos ministros do STF. Como se fosse dever de ofício, protegem o sistema como é, irretocável porque supostamente perfeito. Ao tratarem do assunto, valem-se de argumentos de autoridade. Conduta comum, aliás, a muitos ministros da Corte, que julgam ter com a verdade e o saber uma insuperável relação de intimidade.
O ministro Roberto Barroso, numa entrevista ao UOL sobre voto impresso, afirmou, irônico, que “tem gente que tem horror a coisas que dão certo”. Fico tentado a dizer que tem gente com horror a ser contestado.
Parcela imensa dos eleitores não confia num sistema em que não pode verificar se o digitado é o que vai para a urna. Quando a maquineta emite o sinal de votação concluída, o voto do eleitor se desmaterializa. É virtualmente incinerado! O produto final do aparelho incinerador é uma lista com a soma aritmética dos votos obtidos por candidatos na sessão eleitoral – o chamado Boletim de Urna.
Alemanha, Holanda e Índia rejeitaram esse tipo de urna pelo motivo óbvio de não permitir recontagem de votos. A Bélgica usa urnas com impressora do voto individual. A resposta à objeção passa, mais uma vez, pelo argumento de autoridade.
Por que recontar se a máquina contou e ela conta certo? Se jamais se comprovou fraude? Com esse argumento vaporoso, damos como “coisa que deu certo” um sistema rejeitado por democracias mais sólidas e estáveis do que a nossa.
Nossa urna é dita perfeita porque não há um único erro comprovado desde sua primeira utilização em 1997. Mas como comprovar erro se não é possível contar voto?
Na mesma entrevista ao UOL, o ministro Roberto Barroso afirmou que o sistema é auditável do primeiro ao último passo e argumentou que cada BU pode ser examinado por qualquer cidadão para conferir se a lista que a urna imprimiu confere com os números de seu output para totalização.
Que espécie de conferência é essa? Quase uma comparação de algo consigo mesmo. Não, ministro! A conferência dos votos continua sendo valiosa para eleitores e para quem disputa o pleito. Os que exercem o direito de votar e os candidatos querem a certeza de ter bem contados os votos dados e recebidos.
Secreto é só o voto do eleitor. Todo o resto deveria ser público, ainda que possa demorar um pouco mais.
A agilidade nunca foi uma virtude das democracias.
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Percival Puggina
Membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.