Um novo fenômeno, de início incompreensível e assustador, vem ocorrendo nas escolas de ensino médio nas mais diversas partes do País. De uma hora para outra, como um inesperado tsunami, começou a ocupação por jovens estudantes dos prédios em que estudam. Como não são casos isolados, pois essas ocupações se esparramaram como rastilho de pólvora por diversas cidades e estados, merece uma cuidadosa reflexão.
De início, vozes mais conversadoras tentaram passar para toda a sociedade a ideia de simples vandalismo, com roubos e destruição do patrimônio escolar, usando o pretexto de que a escola é um lugar sagrado de estudos e não de manifestações reivindicatórias, políticas e sociais. Ocorre que essa movimentação de jovens assustou de tal forma políticos e administradores públicos a ponto de desencadear uma forte reação em várias Assembleias estaduais e Câmaras municipais. Nestes âmbitos já existem projetos chamados acertadamente na imprensa de “lei da mordaça”, para impedir que a escola seja um espaço democrático e de discussões de política, religião e outros temas caros à juventude de hoje. Até aqui, em Campo Grande (MS), a Câmara municipal aprovou uma excrecência desse tipo, felizmente rejeitada pelo prefeito por pressão da sociedade.
Os jovens a quem me refiro estão mostrando uma consciência política e social inovadora ao exigir em suas escolas melhores condições de estudos e de convivência, alimentação e maior comprometimento do Estado com a educação. Esse despertar de reivindicações, com uma pauta definida e que visa o interesse da coletividade e defesa da escola pública de qualidade, está surpreendendo os gestores e políticos mais conservadores, acostumados com o mutismo e a alienação de estudantes nestes tempos bicudos. No caso de São Paulo, as reivindicações extrapolaram os muros escolares, adquirindo uma postura política madura ao exigirem esclarecimentos, apuração e punição para a roubalheira praticada por uma quadrilha especializada na manipulação dos recursos destinados à merenda escolar.
Tais motivações parecem resgatar o fervilhar político da juventude nos anos de 1960/70 do século passado, antes e durante o regime militar que tanto infelicitou o País, num momento de grandes avanços na área social, da cultura e da educação. Penso até que a grande vitória do regime de exceção militar foi reprimir as atividades políticas estudantis, abortando projetos importantes para melhorar a qualidade de vida do brasileiro e a emergência de lideranças nos meios educacionais, culturais e artísticos, apostando no individualismo e no imobilismo de forças sociais esmagadas pelo medo.
Por mais de duas décadas, e por décadas seguintes, gerações de jovens navegaram num mar de alienações, com a perda da herança cultural anterior a 1964, conhecida como democracia populista e, desaguando em formas de manifestações orquestradas, alheias à política e aos interesses da sociedade, e que de fato interessava aos “donos do poder” como estratégia de controle social. O infeliz resultado desta situação foi um grande hiato na formação de lideranças políticas e uma mentalidade individualista induzindo os jovens a obter sucesso pessoal e a permanecer completamente alheios às necessidades coletivas.
Com certeza, a ocupação das escolas, muitas delas com apoio de pais e de professores (esclareço que essa situação nem sempre teve a unanimidade de seus atores, o que é uma grande novidade), resgatou a prática democrática de discutir cada ato e cada decisão em assembleias e, com isso, despontando novas e interessantes lideranças comunitárias e estudantis. Vendo nas TVs algumas reportagens sobre as mais diversas escolas ocupadas (em dois meses, 70 escolas em S. Paulo) e uma moçada atuante e determinada nos seus propósitos, penso com saudades no emblemático 1968, quando estudantes, intelectuais, artistas, sindicalistas e parte significativa da população trabalhadora foram às ruas contra os desmandos do governo autoritário e repressor.
A imprensa também mostrou a depredação de alguns prédios e o desaparecimento de computadores e equipamentos de valor, mas não enfatizou que foram casos excepcionais. O vandalismo existe, o crime de roubo também e nem sempre a sociedade e, no caso, os estudantes organizados conseguem evitar. Os casos de repressão policial foram lamentáveis sob diversos pontos de vista, tratando os jovens resistentes como meliantes. Os verdadeiros delinquentes não são estudantes e estão nas ruas aos montes, importunando a sociedade, sem efetivo controle policial.
Mais do que nunca, devemos prestar mais atenção e procurar compreender, e defender, esses jovens corajosos e guerreiros, pois eles poderão nos representar num futuro próximo, na construção de uma sociedade melhor, mais justa e cidadã, que respeite a nossa multiculturalidade e torne realidade a utopia de que o brasileiro é um povo alegre e feliz. Eles resgatam neste momento a escola como o coração da sociedade, em seus mais diversos sentidos. Por causa desses estudantes, creio ser possível virar a página de um tempo infeliz que estamos vivenciando hoje, quando o crime bem organizado e bem vestido se institucionalizou no Brasil, adquirindo proporções assustadoras.
Pode demorar, mas também pode acontecer.
Valmir Batista Corrêa
Valmir Batista Corrêa
É professor titular aposentado de História do Brasil da UFMS, com mestrado e doutorado pela USP. Pesquisador de História Regional, tem uma vasta produção historiográfica. É sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de MT, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de MS e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.