Uma profissão de risco
A luta dos professores de todo o país é uma luta dura, justa e que não terminará tão cedo
06/06/2015 às 00:03 Ler na área do assinanteVejo com muita tristeza e apreensão o pipocar de greves de professores que lutam pelos seus direitos em todo o país. É uma luta dura, justa e, da forma como é encarada pelos detentores do poder, não terminará tão cedo. A educação, infelizmente desvalorizada e a despeito da falácia “pátria educadora”, é indiscutivelmente a base de toda a sociedade e a resposta a muitos dos nossos problemas.
Mesmo aposentado, continuo a conviver com colegas que ainda estão em plena atividade de sala de aula. E cada vez mais me preocupo com o que está acontecendo nas escolas de todos os níveis. Sou daquele tempo em que o professor era um herói para seus alunos, fossem crianças ou adolescentes. O respeito era tão grande a ponto de o professor ter a mesma importância dos pais dos seus alunos. É verdade que alguns docentes mantinham esse respeito pelo medo, com atitudes autoritárias e repressivas, mas isso não era a regra. A grande maioria dos docentes se dedicava aos alunos como a seus próprios filhos. E a escola era como uma igreja: um local sagrado.
Hoje, a violência entre alunos e contra professores não é mais uma novidade em nossos dias. Lembro-me de um caso mais ou menos recente e preocupante ocorrido em uma instituição de ensino público de Campo Grande. A escola desenvolvia um programa de aproximação da comunidade chamado “Amigos da Escola”, interrompido por uma tragédia. Basicamente, o programa abria a escola nos fins de semana para uso em atividades recreativas da comunidade, independente de ser ou não aluno ali matriculado. No caso em referência, um adolescente que jogava bola na quadra foi estupidamente assassinado por outros adolescentes.
Apesar do acontecido, penso que uma política de aproximação pode levar a comunidade a defender e respeitar a escola como um patrimônio de todos e como um espaço comunitário de multiuso. Infelizmente este processo de aprendizado confronta-se com a violência cotidiana cada vez mais intensa e com a sua irmã siamesa, a impunidade. Menores invadem escolas para roubar a merenda e instrumentos de trabalho e estudo (principalmente computadores) em finais de semana. Nos dias de aulas normais, pequenos traficantes rondam os alunos que se dirigem para a escola ou para suas casas, roubam celulares, mochilas e ameaçam especialmente as meninas de estupro.
O mais surpreendente é que, cada vez mais, estamos assistindo à banalização de crimes contra pessoas ou patrimônios públicos ou privados por menores, o que leva a crer que o Estatuto da Criança e do Adolescente não acompanhou a evolução da nossa sociedade. Ressalto que recentes estatísticas afirmam que menores matam menos que adultos, mas os casos de furto e roubo são abundantes entre esses. Parece até uma posição eticamente incorreta, mas é incompreensível ver um menor de idade que cometeu um assassinato ser solto depois de completa a sua maioridade. Se você for vítima de alguma violência desse tipo, então, o desejo imediato é pela punição mais severa do menor delinqüente. Dai, para a defesa do projeto que amplia a penalidade para menores a partir dos 16 anos é um pulo.
A propósito, essa questão da maioridade penal é muito controversa e necessita ser muito bem esclarecida. A lei vai colocar menores de idade nas cadeias que são verdadeiros infernos e escolas do crime para que saiam piores do que quando ingressaram? Não é melhor investir em infraestrutura adequada e aperfeiçoar as medidas socioeducativas para de fato recuperar os infratores? Em casos de extrema violência com assassinato, em se tratando de crime hediondo, como devemos tratar o menor: jogando-o no meio de adultos piores que ele? Existem medidas imediatas que resolvem o problema? Só depois de responder a essas perguntas é que devemos nos posicionar.
Como se sabe, os menores de idade infratores já cumprem penas convertidas em medidas socioeducativas. Entretanto, o Estado não desempenha de forma competente o seu papel na recuperação desses jovens em instituições apropriadas, de forma que as Fundações Casas são, na verdade, verdadeiros depósitos de crianças e adolescentes, confinando-os de forma desumana e sem resultados positivos na maioria dos casos. Este é o grande desafio do momento.
É nessa sociedade problemática e violenta que se insere o educador e seu campo de trabalho, a escola. Para conhecer melhor as condições de trabalho dos professores na capital do Estado, o Sindicato Campo-grandense dos Profissionais da Educação Pública encomendou tempos atrás, ao Instituto de Pesquisa de Mato Grosso do Sul, um levantamento de dados com resultados ainda atuais (penso que são hoje até mais aguçados). Foram consultados naquela época 4.000 professores que, voluntariamente, responderam a um extenso questionário. A pesquisa trabalhou com um universo representado por uma amostragem de 20%,
O resultado foi estarrecedor. Segundo os professores consultados, 23,5% dos que trabalham em escolas municipais já sofreram algum tipo de agressão, o mesmo ocorrendo com 13,7% dos professores de escolas estaduais. Ainda no universo dessa pesquisa, 55% dos professores estaduais e 46,1% dos municipais consideraram-se vítimas de desrespeitos, insultos e ameaças. Outros dados tenebrosos coletados na pesquisa dão conta de que mais de 50% dos professores denunciam uma sobrecarga de trabalho, resultado de baixos salários que os obrigam a trabalhar em várias escolas e que, se fosse possível, mudariam de profissão. Em tais condições é fácil compreender o expressivo número de licenças médicas provocadas por depressão, lesões ortopédicas e vocais e até necessidades de acompanhamento em saúde mental.
Já foi o tempo em que a atividade do magistério era uma missão ou sacerdócio. Agora, com certeza, é uma profissão de alto risco. Tenho a impressão de que os educadores estão sendo colocados num circo de leões sem a necessária proteção do Estado. Desse modo, esses dados deveriam servir de alerta para as secretarias de educação do estado e municipais indicando claramente que alguma coisa está errada e urge uma profunda reforma na política educacional.
Quem sabe chegou o momento da realização de um grande debate envolvendo todos os segmentos da sociedade sul-mato-grossense e de enfrentar esses problemas com toda a coragem possível.
Valmir Batista Corrêa
Valmir Batista Corrêa
É professor titular aposentado de História do Brasil da UFMS, com mestrado e doutorado pela USP. Pesquisador de História Regional, tem uma vasta produção historiográfica. É sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de MT, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de MS e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.