Justiça absolve a TV Globo, não dá razão aos irmãos de Aída Curi e mais de 60 anos depois suas feridas voltam a sangrar
13/02/2021 às 19:33 Ler na área do assinanteO Direito é a arte do que é bom e do que é justo. É o que nos legaram os Romanos:
"Jus est ars boni et aequi".
Daí, as indagações: foi bom e justo a TV Globo, perto de meio século depois, reviver, em 2004, no programa Linha Direta, o assassinato da jovem Aída Curi em 14.7.1958?
Foi bom e justo reproduzir com fotos de Aída (fotos dela viva e dela caída morta no calçadão de Copacabana), a vida, a morte e a pós-morte da jovem de 18 anos?
Foi bom e justo a TV Globo desatender e desrespeitar a prévia notificação judicial que os quatro idosos irmãos de Aída endereçaram à emissora com pedido para que não exibisse o programa?
Foi bom e justo reviver a tragédia que até hoje - e para sempre - jamais sairá da memória dos irmãos de Aída, de seus descendentes, cujas feridas voltaram a sangrar?
Foi bom e justo, nesta época de violência urbana, de violências contra a mulher, de feminicídios, que a sociedade, amedrontada, enfrenta no seu dia-a-dia, reviver a tragédia de 1958 em Copacabana?
Foi bom e justo para o jornalismo repetir fatos dolorosos, mórbidos e de uma hediondez sem tamanho, sem que nada, rigorosamente nada de novo ou conexo justificasse a reprodução da tragédia?
A todas essas perguntas e a muitas outras que poderiam ser feitas aqui, a Justiça, inacreditavelmente, disse sim.
Disse que foi bom e justo.
Isto porque a ação indenizatória que os irmãos de Aída propuseram contra a TV Globo (Globo Comunicações e Participações S/A) foi julgada improcedente pelo Juízo da 47ª Vara Cível do Rio.
O recurso de apelação dos irmãos de Aída também foi negado (por maioria de 2 votos a 1) pelo Tribunal de Justiça do RJ.
O recurso Especial para o Superior Tribunal de Justiça (STJ) também (por maioria de 3 a 2) não foi provido.
E, por fim, por larga maioria de 9 a 1, o Supremo Tribunal Federal (STF), finalmente inocentou a Globo, o que significa dizer que o bom Direito estava com a emissora. E não com os irmãos de Aída.
E a absolvição da TV Globo, por todas as instâncias, indica que o gesto da emissora foi bom, que foi justo, isto porque o Direito não é a arte do que é bom e justo?
Os irmãos de Aída constituíram o mais notável, tradicional e respeitado escritório de advocacia para defendê-los, o "Algranti e Mourão Advogados Associados" com sede no Rio de Janeiro.
Todas as petições e fundamentações do dr. Roberto Algranti Filho e seus colegas de escritório foram invejáveis.
Foram de uma elegância, veracidade, riqueza e primor insuperáveis.
Esta não é uma afirmação abstrata, vazia e sem lastro do autor deste artigo, que por 45 anos ininterruptos dedicou seus estudos (inclusive no Exterior) e sua advocacia, exclusivamente, à Responsabilidade Civil, às ações indenizatórias em favor de vítimas de toda espécie de danos.
Logo, não é leigo nem principiante quem externa, aqui, os merecidos elogios.
Os próprios magistrados que julgaram o caso fizeram questão de constar em seus votos e decisões o aplauso ao trabalho do dr. Algranti Filho e colegas. Elogiaram, mas a maioria não lhes deu razão e os irmãos de Aída perderam.
E a TV Globo venceu.
Os defensores da Globo convenceram a maioria dos magistrados. A mim - e a muitos outros -, não.
Dores da saudade, dores decorrentes de tragédias, dores que atingem o corpo, a mente e a alma só quem sente é que sabe como pesa, como se sofre... Como dói!
Aida Curi (15.12.1939 - 14.7.1958) era a terceira filha de um casal de imigrantes da Síria.
Aos 5 de idade perdeu o pai e a mãe veio trabalhar no Rio, então Capital Federal (Distrito Federal).
Ela estudava datilografia, inglês e português e trabalhava na loja de um irmão. Tinha 18 anos de idade quando foi assaltada em Copacabana.
Aída foi atrás do ladrão para recuperar a bolsa e o óculos.
Foi quando o ladrão e mais outros dois comparsas puxaram Aida para dentro do elevador do prédio da Avenida Atlântica. Levada ao 12º andar sofreu violência sexual. Desmaiou. E para encobrir o crime e simular suicídio, seus algozes a atiraram do terraço do Edifício Rio Nobre. Morreu em razão da queda.
A história da vida de vultos da Humanidade à História (com H maiúsculo) pertence.
Assim acontece com Joana D'Arc, Getúlio Vargas, John Kennedy, Nelson Mandela, Gandhi... e centenas de outros. Mas a história da vida de Aída Curi apenas a ela e seus familiares pertence.
De todos eles, gerações após gerações, é um Direito personalíssimo.
Podem passar anos e séculos que não cai no chamado "domínio público", como acontece com o direito autoral. E não será esse tal "Direito ao Esquecimento"!! (uma novidade fictícia que apareceu do nada) e sobre o qual os juízes debateram ao longo da tramitação da ação contra a Globo, que ampara os irmãos de Aída. Nada disso.
Os irmãos e familiares de Aída têm, sim, o sagrado Direito ao Respeito à Dor. O sagrado Direito ao Silêncio. O Direito à Memória da Irmã. O Direito à Paz. O Direito ao Sentimento. O Direito da Não Perpetuação da Dor. Violar um deles é grave. Violar todos, tal como aconteceu, não é gesto civilizado, mas desumano e crudelíssimo.
Um registro: Em Março de 1960 o autor deste artigo tinha 13 anos de idade. E por causa do falecimento recente de sua mãe, que dele cuidava, seu pai passou a levá-lo para o Palácio da Justiça do então Distrito Federal.
Nas férias e durante quase todo o dia, o menino ficava no cartório da 11ª Vara Cível, onde o pai era lotado. Foi quando no início de uma certa tarde, por volta das 14 horas, que o juiz-presidente do 1ª Tribunal do Júri foi até o gabinete da 11ª Vara Cível (ambos, 11ª Vara Cível e Tribunal do Júri ficavam no mesmo 2º andar do prédio do fórum, na Rua Dom Manoel, nº 29, hoje transformado em museu).
Este juiz era o Dr. Talavera Bruce. Já vestindo suas vestes talares próprias da magistratura, o juiz perguntou ao meu pai: "o menino veio hoje?". Sim, o menino estava lá. E de mãos dadas com o magistrado, o menino - franzino, de calça curta e suspensório -, foi levado pelos corredores do 2º andar, até ser introduzido no plenário do 1º Tribunal do Júri.
E o menino enfiava a mão direita na urna e sorteava os jurados que julgaram Ronaldo Guilherme de Souza Castro, um dos assassinos de Aída.
E eu fiquei cara a cara com o acusado, ele já sentado no banco dos réus.
Em seguida, me escondi entre as cortinas vermelhas do tribunal e ouvi parte da leitura das peças do processo. Naquela época só um menor de idade podia sortear jurados no Tribunal do Júri.
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Jorge Béja
Advogado no Rio de Janeiro e especialista em Responsabilidade Civil, Pública e Privada (UFRJ e Universidade de Paris, Sorbonne). Membro Efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB)