Quando, no meio acadêmico, a "capacidade de abstração" e o "pensamento lógico" são artigos raros, o futuro é um abismo em que o país, salvo se houver uma reação por motivos nobres, vai fatalmente afundar, vendado pelo obscurantismo e abatido pelo egoísmo dos mais astutos.
Daí, é mau sinal que um mestrando em História seja capaz de ejetar meras crenças ideológicas como se fossem categorias filosóficas.
Aconteceu em Porto Alegre. E não é matéria vencida: ainda convém analisar aspectos obscuros que precisam ser desnudados.
O vereador socialista Matheus Gomes, na solenidade em que tomava posse na Câmara Municipal, enxergou (vá saber através de que lentes) racismo na letra do hino rio-grandense. Uma tolice que não se sustenta.
Para ele, a memória dos negros que foram escravos é ofendida por versos que dizem: "Povo que não tem virtude/ Acaba por ser escravo."
Mas será que Francisco Pinto da Fontoura, autor da letra do hino, está acusando todos os escravos da história de haverem sido carentes de virtude? Um aluno do fundamental não poderia cometer esse erro.
Analisemos apenas e tão-somente a literalidade do texto. E, para efeito de comparação, usemos uma assertiva despretensiosa: "gente que toma cicuta acaba por falecer".
Será uma afirmação verdadeira ou falsa?
É claro que é verdadeira! Nem precisa saber que a cicuta é uma planta do grupo das apiáceas, usada, na antiguidade, no preparo de flechas envenenadas: basta lembrar que cicuta foi o veneno que matou Sócrates.
Agora, dizer "gente que toma cicuta acaba por falecer" será o mesmo que afirmar que "todas as pessoas que morreram tomaram cicuta"?
Logicamente, não! Sendo a cicuta um veneno letal, em regra, os que a tomam acabam morrendo. Mas isso não equivale a dizer que os demais inumeráveis defuntos da história tiveram morte pela mesma causa.
Façam o paralelo!
Se a falta de virtude escraviza, então aqueles que não têm virtude acabam escravizados (seja qual for o simbolismo das palavras).
Mas não se está dizendo aí, de modo algum, que foi por carecerem de virtude que todos os inumeráveis escravos da história sofreram o injusto flagelo da escravidão, o que seria, naturalmente, um absurdo.
E aí está o primeiro e desconcertante erro de quem se declarou historiador e mestrando da Universidade Federal do Rio Grande do Sul: ter apontado, na letra do hino, uma ideia que nela não existe.
Mas há, ainda, outro erro grosseiro nas entrelinhas da manifestação do socialista: "escravo" é, no seu dizer, sinônimo de "negro".
Se fosse possível identificar todos os escravos da história, ficaria evidente que os negros são minoria: convenhamos, é um detalhe idiota, que não torna a escravidão menos abjeta. Mas atrapalha a "narrativa" socialista, que tenta transformar os negros em massa de ressentidos.
Há, ainda, o fato de que muitos dos negros trazidos para as Américas foram vendidos aos traficantes de escravos por outros negros. Tal como nos demais continentes, nas guerras intertribais da África, derrotados viravam escravos dos vencedores e, em muitos casos, eram vendidos.
De modo algum, isso não atenua a hediondez do "tráfico negreiro". Mas enfraquece o discurso do "vitimismo" alimentado pela esquerda cujo projeto de poder prevê dividir as pessoas e criar fronteiras de ódio.
A escravidão é uma das mais execráveis formas de abuso. Mas, seria o abuso uma exclusividade de quem tem a pele clara? A resposta é óbvia.
O comportamento abusivo não é questão de raça, nacionalidade, sexo, religião ou convicção política, porque o egoísmo não depende de raça, nacionalidade, sexo, religião ou convicção política. E ao negar esse pressuposto, o socialismo sempre fracassou e seguirá fracassando.
Por fim, veja-se a estrofe inteira à qual pertencem aqueles versos:
"Mas não basta, pra ser livre/ Ser forte, aguerrido e bravo/ Povo que não tem virtude/ Acaba por ser escravo."
É um libelo que renega a força bruta e exalta a virtude, subsidiando o discurso de quem realmente se empenha em derrotar o egoísmo.
Como não reconhecer nesses versos uma mensagem ética em oposição aonefasto estigma social que discrimina pessoas pela cor da pele?
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Renato Sant'Ana
Advogado e psicólogo. E-mail do autor: sentinela.rs@uol.com.br