O índio, sua aculturação e o extermínio de suas raízes pelos povos invasores
19/04/2016 às 15:58 Ler na área do assinante'Todo dia era dia de índio, mas agora eles só tem o dia 19 de Abril'
Existem muitas questões no texto que podem ser pensadas de maneira mais profunda.
Ao analisar a discussão sobre a manipulação de entidades religiosas, o autor citar a questão que envolve o envolvimento de evangélicos na cultura religiosa indígena.
Gostaria de afirmar, que os primeiros grupos a chegarem ao país, além dos portugueses, foram os jesuítas. Não há razão de se pensar que os índios foram ameaçados quanto à sua devoção aos deuses que cultuam pelos evangélicos.
Para tentar entender a formação do povo brasileiro necessita-se voltar o olhar sobre a nossa história, buscando desvelar os caminhos que percorreram nossos ancestrais índios, portugueses e negros, etnias básicas de nossa formação étnica e cultural.
Uma das matrizes étnicas do povo brasileiro é a indígena. Os índios brasileiros eram, na maioria, nômades e, na busca de nichos ecológicos favoráveis, migravam constantemente.
À beira mar dominavam os povos do tronco linguístico Tupi, que se expandiam até a Amazônia.
Embora divididos em distintas nações, falavam línguas do mesmo tronco. Suas tribos atingiam, no máximo, três mil pessoas e na medida em que cresciam, seus núcleos populacionais bipartiam-se, formando um novo povo. Acredita-se que, se esses povos tivessem usufruído alguns séculos mais de liberdade e autonomia, possivelmente viessem a uniformizar-se culturalmente, vindo a formar uma nação poderosa.
Darcy Ribeiro, ao longo de sua vasta obra, declara o quão difícil é reconstruir esse processo e entendê-lo em toda sua complexidade, uma vez que só dispomos do testemunho de um dos protagonistas, o invasor. É o português que fala relatando o que sucedeu com os índios e com os negros, não dando aos dominados a palavra de registro de suas falas próprias. Daí ser necessário lermos de uma forma crítica a versão do dominador para se tentar alcançar e abarcar a compreensão dessa aventura desventurada, no dizer de Darcy.
Os grupos indígenas litorâneos, à época da invasão dos portugueses, somavam segundo dados, um milhão de pessoas, divididos em aldeias com trezentos a dois mil habitantes. No total, acredita-se que cerca de cinco milhões de pessoas habitavam o Brasil na época da invasão portuguesa.
Dentre todos os povos autóctones, dispomos de um número mais expressivo de estudos do povo do grupo Tupi. Segundo esses estudos esse povo dava os primeiros passos em sua evolução cultural já tendo superado a fase paleolítica, na época da conquista. Já havia domesticado muitas plantas, especialmente a mandioca, alimento até hoje apreciado em toda a América e base da alimentação no Nordeste brasileiro. Também o milho, a batata doce, o cará, o feijão, o amendoim, o tabaco, a abóbora, o algodão, as pimentas, o abacaxi, o mamão, a erva-mate, o guaraná só para enumerar algumas. Também árvores frutíferas, como o caju, a manga, entre outras apreciadas frutas tropicais, eram conhecidas e cultivadas.
O fato de os povos indígenas organizarem-se de forma tribal, ou seja, entidades autônomas, deve ter sido o fator que impediu que se unissem contra os invasores, o que facilitou a sua quase completa destruição pelos brancos.
É difícil para nós, intelectualmente, repensar o desencanto que se deu entre essas culturas e o seu real significado. Os povos originários vivendo singelamente em um mundo dadivoso, sem culpas. Os recém-chegados eram gente prática, sofrida, ciente de suas culpas e pecados, predispostos à virtude com a noção de perdição eterna. Os indígenas nada sabiam disso. Aos olhos europeus eram povos vadios, vivendo uma vida inútil, já que nada produziam. O europeu, a essa época, via a vida como uma tarefa, uma obrigação sofrida e subordinada ao lucro e ao domínio de terras e de suas gentes. E, dessa forma, impondo uma cultura pela força, o Brasil foi se “uniformizando”.
Um século após a invasão destas terras pelos europeus, no lugar das povoações litorâneas que os cronistas contemplavam maravilhados, surgiram três tipos novos de povoações: a principal formada pelos engenhos de açúcar e portos onde se concentravam os povos africanos. Outro, disperso pelos vilarejos formados por brancos pobres e mamelucos . E o último núcleo constituído pelos índios incorporados à empresa colonial como escravos ou concentrados nas aldeias, alguns ainda mantendo autonomia, enquanto que outros eram regidos pelos missionários.
É importante sinalizar o papel, embora involuntário, que a mulher índia desempenhou como geratriz da etnia brasileira. Exploradas sexualmente, geraram toda uma prole mestiça que viria a ser mais tarde a maioria da gente da terra, os brasilíndios, no dizer de nosso autor.
Dois séculos se passaram. Por esse tempo, as ordens religiosas que, a principio, desempenharam o papel de “amansadores” de índios para a escravidão, começam a tomar consciência da brutalidade de seu papel a por em prática no Brasil a experiência paraguaia de reunir os índios destribalizados, não obtendo, no entanto, o sucesso conseguido na colônia espanhola. Isso se deu por causa da resistência dos colonos e pelas enfermidades que os próprios missionários transmitiram à população nativa.
Darcy Ribeiro, em suas obras, mostra o quão nefasto foi o papel dos jesuítas, pois retiravam os índios de suas aldeias para concentrá-los nas reduções, onde, além de servirem aos padres e não a si mesmos, morriam nas guerras dos portugueses contra os índios hostis. Matá-los não era seu propósito, mas diante da política e das condições reais foi o que acabou sucedendo. O mais grave porém, era a ambigüidade do papel que desempenhavam em uma dupla lealdade, diante dos índios e à Coroa portuguesa.
No segundo século, a situação tendia a inverter-se com alguns novos jesuítas já conscientes do triste papel que haviam desempenhado, caindo em si. Foram, por isso, perseguidos pelos colonos e, finalmente, expulsos do país pela nova política implantada em Portugal. E então o mais lamentável, os padres entregaram as missões, suas terras e sua população aos colonos ricos antes de serem presos e deportados para a Europa.
Em verdade, as missões exerciam uma forma de cativeiro, pois, embora o índio não tivesse o estatuto de escravo ou de servo, era um catecúmeno, ou seja, um herege que era sendo cristianizado e assim recuperado para si mesmo em benefício da salvação eterna.
Além da fragilização pessoal, que resultava da imposição de uma nova identidade, deviam trabalhar para seu sustento e para fazer próspera a comunidade de que passavam a fazer parte. Podiam ser recrutados para a guerra contra qualquer força que ameaçasse a colônia. Eram suscetíveis, ainda, de serem mandados às vilas para trabalhos de interesse público, como construção de igrejas, fortalezas, urbanização de cidades, abertura de estradas ou até mesmo podiam ser arrendados a colonos. Entretanto, com a expulsão dos jesuítas, sua situação ainda se tornou mais penosa, pois os seus novos administradores fizeram do comércio de índios já aldeados, um alto negócio. O desgaste humano do trabalho cativo constituiu uma outra forma terrível de genocídio imposta a mais de um milhão de seres humanos.
Com a alternância de poder em Portugal, mais tarde os jesuítas regressaram e, junto com outras ordens religiosas como os franciscanos, os carmelitas, os inacianos continuaram a apresentar uma “vida nova”, triste vida para este povo que pautava seu viver por outros valores.
À medida que outros povos europeus, representados por invasores, comerciantes, aventureiros desembarcavam em nosso litoral e miscigenando-se com nossos índios, etnias híbridas surgiam em um processo que Darcy Ribeiro denomina de “criatório de gente”.
A imposição da língua do dominador foi o principal fator de homogeneização da cultura brasileira. A língua tupi permaneceu por séculos como língua-geral entre os mestiços, mas aos poucos o português foi sendo imposto, pois os escravos africanos nos engenhos nordestinos e os mestiços eram compelidos a adotar a fala do capataz, fator que contribuiu na consolidação da língua portuguesa no Brasil. Mais tarde, o mesmo processo linguístico foi imposto aos escravos africanos na região mineira, centro do país. No entanto, muitas variantes linguísticas permaneceram. Na região amazônica, por exemplo, o caboclo adaptado à vida nas florestas é o que guarda mais a herança indígena original.
A incorporação de indígenas à população brasileira só se fez no plano biológico no processo já referido de gestação dos mamelucos, filhos do dominador com mulheres desgarradas de suas tribos. Índios e brasileiros se opõem etnicamente em um conflito que não dará lugar a uma fusão. Onde quer que um grupo tribal tenha oportunidade, conserva a continuidade da própria tradição, preservando sua identificação étnica.
O inevitável convívio aculturativo, porém torna os índios menos índios no plano cultural, deixando alguns grupos quase idênticos aos brasileiros, embora permaneçam identificando-se com sua etnia tribal.
Supunha-se que haveria um trânsito da condição de índio a de brasileiro. Mas isso não ocorreu, e eles continuam investidos de seus atributos, vivendo segundo os seus costumes, cada vez mais aculturados, mas sempre índios em sua identificação étnica, pois o índio, tal como o cigano e o judeu, são irredutíveis em sua identificação. Quanto mais perseguidos mais se afundam dentro de si mesmos.
Darcy Ribeiro faz suas as conclusões de seu mestre Cândido Rondon: “O que cumpre fazer em essência é assegurar aquele mínimo indispensável a cada povo indígena, que é o direito de ser índio, mediante a garantia de um território onde possam viver sossegados, a salvo dos ataques, e reconstituir sua vida e seus costumes, salvaguardando o direito à diferença”.
No que pese a manipulação de grupos que tentam descaracterizar a cultura e a religião indígena, é inegável o fato de que, em mais de 500 anos de história as etnias indígenas estão sendo dizimadas pela ação covarde de grupos compostos por fazendeiros, diante da inércia do governo brasileiro que não se pronuncia e que nada faz para conter os abusos praticados contra eles. A discussão sobre a terra é longa e tem dados históricos, desde o período da colonização até os nossos dias. Não é justo, considerar que apenas um grupo religioso foi responsável pelo “desmonte” da ideologia dos Guaran-Kaiowá. O que está em discussão neste momento, são questões que envolvem áreas de preservação, e atos de vandalismo e violência culminando com a expulsão de tribos indígenas diante da fúria e da força de hostes criminosas que semeiam morte e destruição por onde passam.
Discordo da ideia de que exista a intenção de grupos religiosos, de aniquilar a cultura milenar praticada pelos indígenas. É preciso ponderar, e afirmar que, ao longo de muitos séculos, vários segmentos religiosos, sejam eles, católicos, protestantes, foram até os índios e a exemplo do que fizeram nossos colonizadores, apresentaram uma proposta de fé, distinta, daquelas praticadas na ambiência do povo indígena.
Punir grupos religiosos culpa-los é fácil, é na verdade focar o problema apenas num prisma que precisa ser dilatado, diante do fenômeno histórico que culminou com o aliciamento dos portugueses à cultura indígena, além da violência física, sexual e extermínio a que foram expostos nossos primeiros moradores.
É preciso lembrar que os índios estão fragilizados, entregues a grupos maiores, que invadem a floresta, que matam e estupram índias, não respeitando a demarcação das terras, e ainda são expurgados de seus limites por força dos interesses do governo brasileiro que prefere fazer acordos com grupos empresariais, para a construção de usinas hidrelétricas, em áreas de proteção ambiental.
De acordo com a FUNAI os índios brasileiros estão divididos em três classes: os isolados, considerados aqueles que “vivem em grupos desconhecidos ou de que se possuem poucos e vagos informes através de contatos eventuais com elementos da comunhão nacional”; os em via de integração, aqueles que conservam parcialmente as condições de sua vida nativa, “mas aceitam algumas práticas e modos de existência comuns aos demais setores da comunhão nacional”; e os integrados, ou seja, os nativos incorporados à comunhão social e “reconhecidos no pleno exercício dos direitos civis, ainda que conservem usos, costumes e tradições características da sua cultura”.
Segundo a legislação brasileira, o nativo adquire a plena capacidade civil quando estiver razoavelmente integrado à sociedade. Para que tal aconteça, é necessário que tenha boa compreensão dos usos e costumes da comunhão nacional, conheça a língua portuguesa e tenha a idade mínima de vinte e um anos.
A plena cidadania do índio depende de sua integração à sociedade nacional e do conhecimento, mesmo que precário, dos valores morais e costumes por ela adotados.
O Brasil conta com cerca de 104.508.334 hectares (1 milhão e 45 mil km²) de terras indígenas. Isso representa 12,24% da extensão do território brasileiro (quase duas vezes o território espanhol, que é de 504.800 km²). De acordo com dados de 2001, o Brasil possui 580 áreas indígenas, sendo que no período de janeiro de 1995 a abril de 2001, 99 áreas foram designadas indígenas, perfazendo um total de 30.028.063 hectares (300.280 km²). Da mesma forma, foram homologadas 140 terras indígenas, somando 40.965.000 hectares (409.650 km²). O Governo tem inovado ao celebrar parcerias com as organizações indígenas e de apoio aos índios brasileiros para realizar, de modo descentralizado, os trabalhos de demarcação física dessas terras.
Atualmente, a população de índios brasileiros, agora denominados povos da floresta, está reduzida a menos de 200 mil indivíduos, a maior parte desenraizada e sem identidade cultural.
Pio Barbosa Neto
Professor, escritor, roteirista, poeta
Pio Barbosa Neto
Articulista. Consultor legislativo da Assembleia Legislativa do Ceará