A loucura do mundo sem Deus: Por que vale a pena ler Ben-Hur de Lewis Wallace

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O homem possui uma sede insaciável pelo transcendente, pelo maravilhoso e pelo sublime. Não basta o visível e o palpável. Podemos rejeitar a idéia de uma existência acima de nós que desafia a racionalidade, contudo, reconheçamos que o homem sempre substituirá Deus por outra coisa, sendo muitas vezes uma ideologia.

Segundo o Dr. Norman Doidge, psiquiatra e responsável pelo prefácio do livro Doze Regras para a Vida do escritor Jordan Peterson:

“Ideologias são ideias simples, disfarçadas de ciência ou filosofia, que pretendem explicar a complexidade do mundo e oferecer soluções para aperfeiçoá-lo. Os ideólogos são pessoas que fingem saber como “fazer um mundo melhor” antes de organizarem o próprio caos interior. (A identidade de guerreiro outorgada por sua ideologia encobre esse caos.) Isso é arrogância, é claro, e um dos temas mais importantes deste livro é “arrume sua casa primeiro”, para o que Jordan fornece conselhos práticos. As ideologias substituem o conhecimento verdadeiro, e os ideólogos são sempre perigosos quando ganham poder, pois um comportamento simplista e sabe-tudo não é páreo para a complexidade da existência. Além disso, quando suas engenhocas sociais não funcionam, os ideólogos não culpam a si mesmos, mas a todos que desmascaram suas simplificações.”

A luta por um mundo melhor, por uma sociedade mais justa e igualitária, através da destruição dos pilares que sustentam a civilização ocidental para substitui-los por devaneios totalitários de globalistas e socialistas. Entre o norte moral sólido encontrado na moral judaica e cristã e uma pseudomoralidade que reflete o narcisismo e hedonismo do individuo, o mundo moderno julga, sem muito critério e prudência, o segundo como o melhor.

O escritor Luiz Felipe Pondé, no livro Contra um mundo Melhor, afirma:

“Acho que a vida provavelmente não tem nenhum sentido, apesar de que é na sua forma profunda um movimento que busca a ordem. Em matéria de sentido, prefiro os antigos: Deus, a fidelidade, a castidade, a culpa, a disciplina, a família, o medo, Shakespeare, a Bíblia, a Ilíada. Rejeito todos os novos sentidos: a democracia como religião moderna, a revolução sexual, que não passa de puro marketing de comportamento (continuamos a mentir sobre o sexo e a ser infelizes), a sustentabilidade (nova grife para o ambientalismo), a cidadania, a igualdade entre os homens, uma alimentação balanceada, o fascismo dos direitos humanos, enfim, tudo o que os idiotas contemporâneos cultuam em seu grande cotidiano.

Ao eliminar Deus do debate público, a intenção é oferecer uma versão miserável e caricata. Por isso, que a leitura atenta dos clássicos da literatura mundial e nacional tem tanto a oferecer.

Por isso, como critico literário busco através da literatura resgatar valores que estão sendo perdidos. Busco levar o sublime para um mundo que enaltece e se vicia no grotesco. Temos panfletos, muita retórica e quase nenhuma literatura.

Por isso, vale muito a pena ler Ben-Hur de Lewis “Lew” Wallace, pois o autor com maestria soube levar o leitor pelos caminhos do perdão, fé e recomeço. Utilizarei de meu texto de crítica publicado pelo jornal Duna Press como texto base deste momento em diante, contudo me valerei de necessários acréscimos.

Ben-Hur assombra por tocar em algo que nunca será “expurgado” da humanidade, sim, perdão aos que levam as previsões e esperanças ateístas de Richard Dawkins e Christopher Hitchens como certezas, pois a necessidade de vislumbrar o transcendente e o invisível sempre fará parte da humanidade. Religiões passarão, serão renovadas em suas liturgias e dogmas, porém essa busca pelo Divino não cessará.

Deus sempre se comunicará com a chama da vida que habita em nós, pois veio Dele e isso nos torna eternamente suas criações. Abandonar o que vai além da matéria, seria abandonar a própria humanidade que há em nós.

Wallace se sobressai como romancista histórico através deste livro por ter optado por relegar a imaginação e criatividade para um segundo plano, não sendo o material principal que compõe o seu mundo, e sim a precisão em recriar a cultura, arquitetura e as paisagens naturais da palestina, como diria a articulista Amy Lifson:

“No verdadeiro estilo de advogado, ele chegou aos livros: primeiro a Bíblia, e depois todos os livros de referência sobre o antigo Oriente Médio que ele conseguia encontrar. Ele suspeitava que um romance sobre Jesus Cristo fosse examinado por especialistas, de modo que plantas, pássaros, roupas, alimentos, prédios, nomes, lugares - tudo tinha que ser exato. Examinei catálogos de livros e mapas e enviei tudo o que provavelmente seria útil’. Escrevia sempre com um gráfico diante de meus olhos - uma publicação alemã que mostrava as cidades e vilas, todos os lugares sagrados, as alturas, as depressões, os passes, as trilhas e as distâncias. Ele viajou para várias bibliotecas em todo o país para garantir que tinha as medidas exatas para o funcionamento de um trirreme romano. Ele forneceu detalhes após detalhes sobre o design de carros persas versus gregos e romanos. Ele fez tudo menos que ir a Jerusalém. Anos depois, quando ele realmente visitou a Terra Santa, ele testou sua pesquisa e disse com orgulho: "Não encontro motivo para fazer uma única alteração no texto do livro".”

Tal meticulosa precisão histórica, confere a obra uma veracidade e cativante mergulho no mundo antigo, o que converge com a leitura, dando-lhe uma fluidez primorosa e tornando o conflito interno e externo do personagem Judah Ben-Hur ainda mais impactante e relevante para o leitor.

O detalhismo serve ao narrador para realçar o drama e não como mero fetiche estético que mais dispersa que capta a necessária atenção do leitor para criar os laços de empatia que o seduziram até a última linha. Nisso poderia o escritor português Eça de Queiroz, caso tivesse encontrado seu contemporâneo americano, ter tido um salto qualitativo em suas obras... Mas deixemos o grande, porém, às vezes, maçante, Eça, em paz.

A estória ficcional trata do embate que se dá entre o jovem Judah e seu amigo de infância o jovem e nobre romano Messala, filho de um coletor de impostos romano cuja família tinha sido agraciada com honras e poder na ascensão de Octávio augusto como imperador de Roma. Algo que terminaria com o envio do nobre judeu, falsamente acusado de tentativa de assassinato do governador romano da Judéia, a ser condenado à escravidão, indo parar como um remador nas galés (embarcação movida principalmente por força humana, mas também impulsionada pelos ventos).Os personagens são apresentados como um paralelo cultural , algo bem claro no primeiro reencontro de ambos.

Há dois pontos importantes nesse encontro, primeiro, o autor revela que a infância havia tornado estes jovens mais que amigos, verdadeiros irmão e tal fato impregna a atmosfera : “À primeira vista tomavam-se por irmãos; ambos formosos, ambos de cabelos e olhos negros, rostos bronzeados e de estaturas proporcionais às respectivas idades.” no entanto logo os difere a começar pelos trajes :

“O maior tinha a cabeça descoberta. Uma túnica caindo-lhe até aos joelhos, e um manto azulado arrastando com descuido pelo chão, constituíam todo o seu trajo, que deixava descobertos os seus braços escuros como o rosto. As suas vestes denunciavam-nos estarmos em presença de um romano.”

Ao referir-se a Judah:

“O companheiro de Messala era de constituição mais débil, e os seus fatos, de finíssimo tecido de linho, estavam cortadas tal como se usava em Jerusalém. Um pano, sustido por um cordão amarelo apertado em volta da cabeça, caía-lhe pelas costas. Um observador, perito na distinção de raças, e mais conhecedor das fisionomias do que dos trajos, teria adivinhado imediatamente a sua origem judaica.”

Essa diferenciação é importante pois se a infância os colocou como irmão , a vida adulta os tornou legítimos representes de suas raças e culturas, trançando um abismo que os separaria.

Messala é irônico, contundente, e preciso em suas palavras:

“É impossível descrever o modo como esta resposta foi dada. A religião antiga havia quase deixado de ser uma fé, a filosofia tomava o lugar da religião e a ironia tomava rapidamente o lugar da reverência.
O jovem Messala, educado em Roma e regressado há pouco tempo, tinha adquirido estes hábitos e estes modos.”

Judah é calmo, observador, sábio e ponderado, fruto da educação dada aos jovens da alta nobreza judaica:

“Também eu aprendi alguma coisa durante estes anos. Hiliel não será igual ao filósofo que tu ouviste, e Simeão e Shammaí são, indubitavelmente, inferiores aos teus mestres. Contudo, a sua sabedoria não esquadrinha caminhos vedados; os que se sentam a seus pés levantam-se somente ricos da ciência de Deus, da lei de Israel, cheios de amor e consideração por tudo que lhes diz respeito. Freqüentando o Grande Colégio e meditando em tudo o que nele ouvi, compreendi que a atual Judéia, não é a Judéia de outros tempos.”

O encontro dos dois mancebos representa o conflito cultural de dois povos, um servo da tradição dos antepassados, da liberdade dada pelo Deus único e da nobreza herdade da certeza de ser um povo escolhido, já o outro, é fruto do império romano e sua educação filosófica greco-romana, do senso de poder superioridade e imperialismo. O jovem judeu se nega a se submeter aos desejos e ideias serviçais que o romano o oferece e o nobre romano rejeita voltar a ser o dócil e gentil amigo de outros tempos, o fim do encontro termina com uma simbólica frase de Messala:

“Messala estendeu-lhe a mão; o judeu transpôs a porta. Quando já se tinha afastado, o romano ficou meditando durante uns instantes, depois, por sua vez, também abandonou o jardim, agitando a cabeça.”
- Seja - murmurou. - Eros morreu, que reine Marte!

Obras como Ben-Hur, revelam que todo individuo possui em si seu próprio demônio, que cada um de nós somos os reais responsáveis por nosso destino, não podendo o meio ser o real definidor de nossa historia. Nada poderia ser tão diferente do pensamento de Rousseau.

Jean-Jacques Rousseau (Genebra, 28 de junho de 1712 — Ermenonville, 2 de julho de 1778) teria aprendido muito se tivesse visto o ser humano para além de um prisioneiro das vontades e imposições do meio.

Foi um dos filósofos que mais relevância possui na formação do pensamento ocidental nas últimas décadas. Embora muito do que se apregoe sobre sua filosofia seja fruto de algo apreendido pelo imaginário popular e não o que a sua obra indica, devemos deixar claro que , de fato, para ele as estruturas educacionais e sociais eram responsáveis por denegrir a condição humana, pervertendo a sua natureza. Claro que essa é uma definição bem limitada, pois a obra, repito, possui um escopo mais denso e necessita ser lida.

Muitos foram impactados, e ainda são, com a idéia de ser a natureza do homem, apartada da convivência social, ser de uma pureza única e a nossa “expulsão do paraíso” se dá ao entrarmos na sociedade. Muitos romances possuem essa concepção, vemos isso em Alencar e em muitos autores posteriores e anteriores a este.

Bem voltemos ao livro...

Valério Gratus, esse é o nome que muda toda a existência do nobre judeu, pois sendo este o quarto prefeito romano da Judéia, sua segurança é uma prioridade e qualquer ataque a ele é, no fim, um ataque a Roma e uma ameaça a seu domínio. Ben-Hur vai ao telhado para ver a procissão que escolta Gratus, uma telha se solta e cai justo na figura do prefeito romano. Messala revela aqui sua natureza e não oferece ao amigo de infância um julgamento, condenando-o a escravidão, como já foi anteriormente dito em nossos textos.

De uma família de boa reputação e importância na historia do povo hebreu, agora, são tratados como rebeldes tendo suas posses confiscadas, o sucessor levado cativo e sua irmã e mãe presas na fortaleza Antônia.

O jovem não sucumbe ao terror e aniquilação que a situação lhe impõe graças ao encontro com um jovem carpinteiro, que mais que água, lhe oferece força para seguir em frente. Jesus está presente em todo o livro e na vida do personagem, dando-lhe forças, e, podemos inferir, toda a jornada do herói aqui trabalhada é para propiciar um encontro entre o Judah com o logos divino. Como revela Amy Lifson:

“Em outra cena bíblica familiar, nas margens do Jordão, onde João Batista abençoa Jesus, vemos a cena através dos olhos de Ben-Hur, que desconfia do João ,sujo e despenteado, e também de um suposto rei vestido como rabino modesto e coberto de poeira. “Apesar de sua familiaridade com os colonos ascéticos em En-Gedi - seus trajes, sua indiferença a todas as opiniões mundanas, sua constância aos votos que os entregavam a todo sofrimento imaginável do corpo. . . ainda o sonho de Ben-Hur sobre o rei, que havia de ser tão grande e fazer tanto, havia colorido todo seu pensamento sobre ele. “Como muitos, ele esperava ver arautos e cortesãos como os de Roma e ficou confuso com o que realmente estava à sua frente.”

O articulista David Jensen reforça ao afirmar:

“Ao longo da história, Wallace explora o conceito do papel de Jesus como um Salvador celestial, e não um rei terrestre, e as ramificações espirituais da distinção. O protagonista, Judah Ben-Hur, inicialmente espera que o Messias prometido por Deus seja um chefe militar para levar os judeus a se libertarem do domínio romano e depois dominarem o mundo. Somente após uma série de dificuldades e desventuras que culminam em testemunhar a crucificação, ele percebe que não é para isso que Jesus foi enviado.”

Ben-Hur trabalha de modo primoroso a jornada do herói, monomito, estudado e divulgado pelo antropólogo Joseph Campbell, tendo sido apresentado pela primeira vez com o livro The Hero with a Thousand Faces ("O Herói de Mil Faces"). Esse conceito logo invadiria a cultura pop através de filmes, desenhos e de todo o entretenimento.

Primeiro o herói enfrenta a partida ou separação/ruptura, quando o personagem é destituído do seu estado inicial e demovido do seu mundo e status, aqui é o momento da destituição do seu papel como nobre e rico judeu para se tornar um escravo. Depois há a iniciação , onde o herói passara por obstáculos , dificuldades que o moldarão em um a figura mais forte e poderosa, aqui representado pelo tempo como escravo e seu encontro com o comandante romano Quintus Arrius, que sabendo por Judah sobre sua origem nobre, orienta ao guarda que este não seja mais acorrentado como os demais remadores, o que possibilita, mais tarde, a este salvar Arrius.

Essa parte é onde o herói ferido e perdido se reencontra consigo mesmo e possibilita seu retorno. Ben-Hur é adotado por Arrius , se torna um homem rico e influente após a morte deste e ademais antes da ultima parte da jornada , O regresso, ele treina arduamente na Palaestra em Roma, um lugar onde gladiadores eram treinados em diferentes formas de combate armado e desarmado. Ele volta pronto para ter sua vingança.

Diferente de muitas outras narrativas heroicas, aqui, o herói não tem sua vitória definitiva sobre o vilão/antagonista Messala, embora este o tenha derrotado na corrida de carruagem, tão espetacularmente mostrada no cinema, Messala segue vivo embora com o corpo cheio de ferimentos causados por haver sido pisoteado por cavalos na corrida e pobre, pois a derrota o fez perder toda a fortuna de sua família.

Cabe a uma antiga amante de Ben-Hur e filha de Balthasar, um dos reis-magos, a morte de Messala, que a condenou a uma vida de dores e miséria junto a ele.

Não caberia a este livro desfecho diferente, pois o herói que destrói seus inimigos e triunfa sobre os que tanto o maltrataram, não converge com a ideia de perdão tão presente no cristianismo. Ben-Hur é um livro que nos entrega Cristo sem dogmas ou liturgias, ele apresenta a essência da conversão e mudança sem grande misticismo. É um livro sobre um jesus não acorrentado nem diminuído pela mente humana.

Bilbiografia:

https://www.britannica.com/biography/Lewis-Wallace. Acesso em: 01 de abril de 2020.

https://www.britannica.com/topic/Ben-Hur-historical-novel-by-Wallace. Acesso em 04 de março de 2020.

OZORIO DE MELO, João. Kim Kardashian mostra que é possível exercer a advocacia sem ir à faculdade. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-abr-19/kim-kardashian-mostra-exercer-advocacia-ir-faculdade. Acesso em 04 de março de 2020.

LIFSON, Amy. Ben-Hur: The Book that Shook the World. Disponivel em : https://www.neh.gov/humanities/2009/novemberdecember/feature/ben-hur-the-book-shook-the-world. Acesso em: 10 de março de 2020.

B.GORDON, Alice. A Critical Estimate of the Writings of Lew Wallace. Acesso em: 11 de março de 2020. Disponível em: >https://digitalrepository.unm.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1138&context=engl_etds

Foto de Carlos Alberto Chaves Pessoa Júnior

Carlos Alberto Chaves Pessoa Júnior

Professor. É formado em Letras pela UFPE.

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