Deixo para as wikipédias da vida descreverem quem foi Enio Mainardi profissionalmente.
Um dos publicitários mais importantes do país, escritor, diretor de tv, poeta; isso para mim, neste momento é irrelevante.
Aliás, acho que sempre foi.
Minha relação com Enio era de uma profunda amizade, coisa do coração, feita de caminhadas pelos quarteirões perto de sua casa, coxinhas comidas às escondidas na padaria da esquina e longas, longas conversas.
Nossos vídeos foram apenas uma decorrência dessa amizade, coisa que fluiu sem planejamento e sem qualquer propósito definido que não fosse nos divertirmos, eu ele e Tereza.
Falar sobre política foi outra decorrência natural, estávamos os três sempre imersos nesse contexto, escrevendo e escrevendo, indignados.
Foi assim que surgiu e cresceu o site A Reunião.
Entre uma coxinha e outra, entre uma caminhada e outra.
Enio detestava lembrar seu passado como publicitário.
Grande contador de histórias, essa ele evitava.
Não havia nele orgulho algum por esse passado especialmente.
E em algumas outras coisas do passado.
Muitas coisas talvez.
Me disse certa vez:
-Por causa do meu gênio e falta de sabedoria, perdi muitos amigos e me arrependo por isso. Mas agora é tarde, não há mais como consertar nada disso.
Eu ponderei que sempre haveria uma forma de se voltar atrás, mas ele encerrou o assunto, triste:
-Não. É irreversível.
Nas ruas, era encantado e encantava as crianças, por quem era apaixonado.
Especialmente as meninas, conversava com todas as que encontrava, era uma espécie de fatalidade, não falhava nunca.
Elas riam com ele, admiradas com aquele avô sorridente de cabelos brancos que, inclinado, elogiava os laços de seus cabelos, os sapatinhos, comentava sobre como era bacana o nome que tinham…
Alguns pais, às vezes, levavam um susto, e não reagiam lá muito bem.
Mas o Enio jamais se incomodou com eles, eram apenas uma moldura, não interessava.
Moças bonitas, mais crescidinhas, também eram alvos de seus elogios.
Enio era, como sempre foi, um admirador da beleza, da pureza.
Da interna e da externa.
Talvez por isso seu amor pela Tereza fosse assim, incondicional, como me confessou várias vezes e eu, cúmplice que fui, jamais contei a ela.
Nem quando, ela em New York, ele reclamava comigo da enorme saudade que sentia dela.
Não caberia aqui o que eu poderia dizer sobre o Enio.
Nem é minha pretensão fazer isso, neste momento.
Estou triste demais pra isso.
Mas, posso dizer que, as vezes meu amigo e as vezes meu pai, ele me ensinou muito.
Me ensinou a repensar o que eu escrevia, reescrever tudo, jogar tudo na lata do lixo e começar de novo, de novo e de novo.
Enio não era meu pai.
Meu pai foi, ele mesmo, um homem excepcional.
Mas que orgulho eu teria se fosse filho dele, de meu grande amigo.
Não pelo que foi profissionalmente, pelo sucesso ou pelo fracasso.
Mas pelo homem que era.
Pelo homem que conheci.
Hoje, tem um significado mais especial -e cruel- uma frase que me dizia, ao longo desses anos:
-A gente devia ter se conhecido antes, teríamos feito muita coisa juntos.
Talvez.
Não saberemos nunca.
Mas fizemos tudo o que pudemos, entre risadas e brigas, como dois bons italianos que sempre fomos.
Enio odiava mentiras.
Por isso, odiaria ver o que agora publicam sobre ele.
Não foi, especialmente, o covid que causou sua morte, como afirmam todos -e me refiro a TODOS mesmo- que não acompanhavam ou não sabiam da situação de sua saúde no último ano.
As sucessivas internações, desde 2019, quando gravamos um vídeo de dentro do hospital, em novembro, seriam mais do que suficiente para debilitar qualquer um.
Agravados por meses de comprometimento dos pulmões e outros orgãos, inclusive o coração, foram a verdadeira -e natural- causa de sua morte.
O teste do covid, sempre negativo, só deu positivo nestes últimos dias, e o vírus foi contraído provavelmente dentro do próprio hospital, quando já não fazia diferença alguma.
Sedado, só um milagre -como muitos que aconteceram com ele- mudaria esse quadro.
O milagre, desta vez, não aconteceu.
Alguma sabedoria acima de nossa compreensão decidiu que, finalmente, era hora de Enio Mainardi descansar.
E descansou.
Sabemos, sim, que provavelmente foi o melhor.
Mas a tristeza...a tristeza é enorme.
*Em tempo, aqui, o último vídeo que gravamos, em julho:
Marco Angeli Full
https://www.marcoangeli.com.br
Artista plástico, publicitário e diretor de criação.