As sereias, metade peixe, metade mulher (embora a descrição possa variar), usavam as armas do feminino para excitar a imaginação masculina e açular o desejo: enlouqueciam marinheiros, que, seduzidos e descontrolados, buscando a felicidade, ganhavam a morte.
É a mitologia, ensinando, entre outros, que somos todos propensos a ser guiados por impulsos irracionais e a fazer escolhas não genuínas.
O seguinte fato está batido, mas não vencido: há uma cilada que precisa ser vista com mais vagar.
Em 08/07/20, não sem dar um verniz filosófico à insensatez, Hélio Schwartsman, editorialista da FSP (Folha de S. Paulo), falou sem rodeios que torce "para que Bolsonaro morra" de covid-19.
É o padrão FSP. Há poucos dias, Gregorio Duvivier, seu colunista, foi condenado judicialmente por postar, não no jornal, é certo, mas no Facebook, seu desejo de que "alguém" matasse o empresário Luciano Hang.
E Mario Sergio Conti, em 07/09/19, com ardis retóricos para se proteger, lamentou que a facada sofrida por Bolsonaro não haja sido fatal.
Mas, no libelo de Schwartsman, o pior é o argumento capcioso, uma cilada cognitiva que pode capturar leitores desavisados.
Para explicar a conveniência da morte do presidente, ele evocou o "consequencialismo", no qual, conforme diz, "ações são valoradas pelos resultados que produzem." Assim, "o sacrifício de um indivíduo pode ser válido, se dele advier um bem maior", acrescentou.
Aplica-se à escolha do motorista que opta por atropelar uma pessoa para poupar a vida de várias. Não é uma ideia apreciável?
Situações há em que semelhante escolha é meritória. E um advogado criminal pode absolver seu cliente ao evocá-lo.
No entanto, ter o consequencialismo como princípio geral é um desastre!
Em última análise, dá margem a que cada qual se veja legitimado para decidir e agir como bem entenda, criando a própria lei.
Que tal ver na prática?
Bolsonaro pensa que as universidades estão dominadas por professores que fazem pregação de esquerda. E tem razão!
Pergunto: se, para frear essa abusiva elite acadêmica, Bolsonaro recorresse a métodos violentos, Schwartsman aceitaria?
É claro que não! Homem culto que é, que sempre se declarou avesso a ideias totalitárias e a toda espécie de autoritarismo, jamais aceitaria.
E, nesse ponto, estaria coberto de razão. No entanto, seria coerente com o que escreveu se aceitasse.
O consequencialismo presta-se a justificar fatos históricos abomináveis que, até o recrudescimento da estupidez da FSP, Schwartsman sempre repudiou com ênfase e fundamento. Teria mudado?
Foi pretextando fazer o bem à Alemanha e à fictícia raça ariana que Hitler tentou exterminar os judeus (matou mais de seis milhões).
Os fascistas de Francisco Franco pretendiam "limpar" a Espanha da presença "imunda" de bascos e catalães.
Mais de 76 milhões de chineses foram mortos pelo regime comunista entre 1949 e 1987, além dos 3,5 milhões de civis que o Partido de Mao Tsé-Tung já tinha assassinado antes de consumar a revolução chinesa (totalizando 80 milhões).
E, na União Soviética, a revolução comunista matou 62 milhões de pessoas entre 1917 e 1987.
Note-se que, só nessas duas revoluções, foram mais de 140 milhões de mortos, tudo para, no dizer dos revolucionários, um "bem maior".
Augusto Pinochet (Chile) e Fidel Castro (Cuba) extinguiram vidas aos milhares, "valorando" suas ações pelos resultados, na presunção de que, de tamanha violência, "adviria um bem maior".
Fica claro que o argumento do consequencialismo serve a qualquer tirano.
Não é por nada que o aplauso mais retumbante ao desvario de Hélio Schwartsman vem do pessoalzinho alinhado com o Foro de S. Paulo.
Volto à mitologia. O verniz de filosofia na insensatez de Schwartsman é o "canto da sereia" a seduzir o leitor que, incapaz de abstrair o conceito, tem a ilusão vaidosa de dominar um paradigma filosófico.
Contrariando presumíveis convicções de Schwartsman, aquele que aceita a sua tese assimila, mesmo sem perceber, uma visão autoritária.
Talvez ele devesse reler a Odisseia de Homero, recordar as aventuras de Ulisses e pensar sobre como o herói venceu o encanto das sereias.
Alertado para os riscos que corria, Ulisses cuidou que o amarrassem ao mastro do navio e tapou com cera os ouvidos de seus marinheiros.
Enlouqueceu, seduzido por aquelas vozes irresistíveis. Mas não se desviou do rumo. Venceu. E triunfou porque teve método.
O mito ensina que somos todos propensos a ser governados pela paixão, a fazer escolhas egoicas e a contrariar nossas próprias boas intenções.
É claro que Bolsonaro tem muito a ser criticado. E, pela enésima vez, diga-se: não é democrático blindar governo algum a crítica.
Só que, como muitos de seus colegas, Hélio Schwartsman está encanzinado em combater Bolsonaro, o que é diferente de criticar. Bacharel em filosofia, ele poderia ter método para não cair nas armadilhas do próprio ego. E não escreveria uma coluna tão desarrazoada.
Seu artigo ainda contém um sofisma, um raciocínio lógico baseado em premissa falsa. Mas já chega! Outros já o criticaram.
Para finalizar, vale lembrar uma ideia universal, elementar nos regimes democráticos: ninguém deve ser julgado nem, muito menos, punido pelo que pensa e sente, ao passo que cada qual é responsável e deve responder por seus atos, palavras e omissões. É a gestão da liberdade.
Renato Sant'Ana
Advogado e psicólogo. E-mail do autor: sentinela.rs@uol.com.br