O supremo deboche de Toffoli: O Tribunal sou eu!

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“L’État c’est moi" (O Estado sou eu!), frase atribuída ao Rei Luís XIV (1638-1715).
13 de abril de 1655, Rei Luis XIV: “L’État c’est moi!" (O Estado sou Eu!)

"O Estado sou eu!" (no original “L’État c’est moi") é declaração atribuída ao Rei Luís XIV, também conhecido como Rei-Sol, que governou a França entre 1643 e 1715. A frase representa o espírito de um período histórico onde havia uma centralização total do poder na figura do Rei, encarnação do Absolutismo.

A frase completa teria sido “Je suis la Loi, Je suis l'Etat; l'Etat c'est moi" (“Eu sou a Lei, eu sou o Estado; o Estado sou eu!”), sendo proferida por Luís XIV no dia 13 de abril de 1655 durante uma sessão no Parlamento francês. O desejo do Rei era reiterar diante dos parlamentares, durante uma discussão acalorada, que o poder estava única e exclusivamente nas suas mãos apesar das discordâncias levantadas naquela casa.

O raciocínio por trás da frase condensa a lógica da monarquia absolutista. Estava nas mãos do Rei o controle de todos os aspectos fundamentais do seu território: a segurança, a manutenção das contas do governo, os acordos internacionais, a gestão do espaço público, a logística da guerra, etc.

Em síntese, todas as decisões fundamentais eram canalizadas para o Rei. Tudo o que era relevante para o governo da França estava sob a sua autoridade.

É mais ou menos o que acontece atualmente no Brasil, onde o “Rei-Sol” é cada um dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), em razão da omissão, negligência e subserviência do Senado Federal e Câmara dos Deputados, rebaixados a meros bufões ou bobos da corte.

Simplesmente inexistem. Se trocarmos a palavra “Rei” e “Luis XIV” por “STF”, teremos uma fotografia mais ou menos precisa do que ocorre nos dias atuais no Brasil, onde STF (e Judiciário, de modo geral) usurpa, a não mais poder, prerrogativas do Executivo e Legislativo.

14 de março de 2019, Ministro Toffoli: “Le tribunal c’est moi, la cour c'est nous !” (O tribunal sou eu, o tribunal somos nós!)

Mais de 364 anos depois da célebre frase absolutista “O Estado sou eu!”, outro rompante absolutista acontece no Brasil, em 14 de março de 2019, quando o “Ministro-Sol” Dias Toffoli, na condição de presidente do STF e em evidente desvio de poder (1), afirmou (sem ter quaisquer prerrogativas para tal) que “os ministros são o tribunal”.

Portanto, como Toffoli é ministro, por decorrência lógica ele próprio é o tribunal. Supremo deboche. É como se Toffoli declarasse: “Le tribunal c’est moi, la cour c'est nous” (O tribunal sou eu, o tribunal somos nós !), restaurando no Brasil o sistema inquisitório por meio da Ordália 4781, digo, por meio do inconstitucional e ilegal Inquérito 4781. Neste inquérito, a suposta vítima, o investigador, o acusador e o juiz são os mesmos.

(1) Importante lembrar, para não cair no esquecimento, que cinco meses antes o ministro Lewandowski ameaçara (ao próprio Toffoli, inclusive) denunciar o desvio de poder que tomou conta do STF, conforme noticiou a Revista Época:

“Foi quando o sangue de Lewandowski subiu. Com o rosto vermelho, disse a Toffoli que, se o caso fosse levado ao plenário, ele denunciaria o desvio de poder que tomou conta do STF. Lewandowski recomendou ao colega que “pensasse bem” antes de levar o processo a julgamento, porque ele não ficaria calado.” (Época, 01.10.2018).

Os demais ministros gostaram da idéia de cada um transformar-se em “tribunal”, pois o silêncio foi convenientemente ensurdecedor.

Sem oposição, uma decisão desprovida de qualquer base constitucional ou legal transformou o STF em onze tribunais. Registre-se que essa transmutação de “ministro” em “tribunal” ocorreu para “dar um jeitinho brasileiro”, enfim, para contornar o inconstitucional artigo 43 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (RISTF), cuja redação (datada de 1980 sob a égide da Constituição de 1967, quando inexistia o Estado Democrático de Direito) é a seguinte:

Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro”.

Destaque-se que mesmo sob a égide da Constituição de 1967 o STF não tinha poderes para inserir esse texto do art. 43 em seu RISTF; basta revisitar a Constituição de 1967 e não se encontrará uma única linha nesse sentido. Por sua vez, a Carta Magna atual, construída sob a égide do Estado Democrático de Direito, muito menos; ao contrário, evidenciou a impossibilidade do sistema inquisitório (Inquérito 4781) no Brasil e reafirmação do sistema acusatório, por meio da introdução do art. 129, inciso I, que determina que

“são funções institucionais do Ministério Público promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei”.

O sistema acusatório também é evidente no Código de Processo Penal, nos arts. 3ºA e 40, nestes termos:

Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação
Art. 40. Quando, em autos ou papéis de que conhecerem, os juízes ou tribunais verificarem a existência de crime de ação pública, remeterão ao Ministério Público as cópias e os documentos necessários ao oferecimento da denúncia.

Nesse sentido, recomendamos revisitar o artigo “O Supremo Tribunal Federal e o Inquérito 4781: a maior fake news do Século XXI”.

STF: Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (RISTF) está acima da Constituição!

Apenas por amor ao debate, admitindo-se uma suposta constitucionalidade do artigo 43 do RISTF – que é mero regimento interno -, a infração penal que admitiria um inquérito a ser instaurado pelo presidente teria que ter ocorrido “na sede ou dependência do Tribunal”. Mas o absolutismo não encontrou limites em Toffoli, graças, repita-se, à inação e subserviência dos bobos da corte e bufões citados anteriormente (Senado Federal e Câmara dos Deputados).

O que Toffoli fez? Invocando para si o direito divino dos reis, demonstrando seu menosprezo à Constituição e mandando às favas o art. 44 (Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional), alegou que embora os possíveis crimes não tenham sido praticados dentro do prédio do Supremo, os ministros, supostas vítimas das suspeitas investigadas, "são o tribunal" (Le tribunal c’est moi, la cour c'est nous !” (O tribunal sou eu, o tribunal somos nós!). Chega a ser risível, não fosse trágico.

Para minimizar a violação da Constituição Federal, pretendendo dar uma aparência de legitimidade, o Ministro Toffoli afirmou que “Não existe Estado Democrático de Direito nem democracia sem um Judiciário independente e sem uma imprensa livre", ao anunciar a medida. Todavia a afirmação é mera - e perigosa (2) - figura de retórica, consistente em frase de efeito para impressionar os incautos; é gigante na forma e na aparência porem diminuta em conteúdo. A título de ilustração da inutilidade prática de frases dessa natureza, a denominação oficial da Coréia do Norte (país mais totalitário e fechado da Terra) impressiona pela retórica: República Popular Democrática da Coréia. Democrática?

(2) frase é perigosa, porque vem sendo repetida no Judiciário, há tempos, a falsa narrativa e mantra de um “judiciário independente” ou “independência do Judiciário” ou variáveis como “independência do magistrado” ou “independência funcional”, que absolutamente nada tem a ver com o art. 2º, caput, da CF/88, que trata da independência entre Legislativo, Executivo e Judiciário, preconizada por Montesquieu.

Essa suposta “independência”, na forma como subliminarmente eles - membros do Judiciário - pretendem, é o direito do magistrado de fazer o que bem entender, sem dar satisfações a ninguém, nem à Constituição, nem à Lei. Nessa concepção delirante e esquizofrênica, o magistrado quer ser a lei. Basta ver o ostensivo ativismo do Judiciário desregrado e sem limites que impera nos dias de hoje, em razão da omissão e leniência do próprio Legislativo que, subserviente (e de joelhos) ao Judiciário, não impõe freios ao avanço deste.

Legislativo se ajoelha e se apequena frente ao Judiciário

Apesar da usurpação do Judiciário das prerrogativas do Legislativo e interferência no Executivo, o Congresso Nacional não aplica suas prerrogativas no sentido de frear aquele Poder, conforme determinação que lhe foi conferida pela Constituição Cidadã, no art. 49, inc. XI:

Compete privativamente ao Congresso Nacional zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes.

O temor reverencial do Legislativo em relação ao Judiciário é de tal envergadura, que o Senado sequer dá seguimento às dezenas de processos existentes contra os ministros do Supremo, conforme preconiza o art. 52, inc. II:

Compete privativamente ao Senado Federal processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal, (...) nos crimes de responsabilidade;

Pode ser enriquecedor reler os artigos “A cassação do senador Davi Alcolumbre, o prevaricador” e “Gilmar Mendes e Davi Alcolumbre: Excelentíssimos Supremos Deboches e afronta à lei”

Enquanto Luis XIV dizia “L’État c’est moi";

Enquanto o STF disse “Le tribunal c’est moi”;

O Legislativo dirá: L'ombre c'est moi! (a sombra sou eu !)

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