Interpretação histórica do artigo 142 da Constituição Federal - O poder moderador do Presidente da República

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Muito se tem discutido sobre o papel das Forças Armadas no direito interno em razão da redação do artigo 142 da Constituição da República que afirma que se destinam à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem, divergindo os estudiosos sobre a interpretação da garantia dos poderes constitucionais.

"CAPÍTULO II
DAS FORÇAS ARMADAS
Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
§ 1º Lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas."

A discussão se tornou mais acalorada por conta de uma entrevista do Procurador Geral da República (PGR), Augusto Aras, que afirmou que as Forças Armadas podem intervir quando houver a interferência de um poder sobre o outro, com base no artigo 142 da CRFB, in verbis:

"Quando o artigo 142 estabelece que a s Forças Armadas devem garantir o funcionamento dos Poderes constituídos, essa garantia é no limite da garantia de cada Poder. Um poder que invade a competência de outro Poder, em tese, não há de merecer a proteção desse garante da Constituição. Se os Poderes constituídos se manifestarem dentro das suas competências, sem invadir as competências dos demais Poderes, nós não precisamos enfrentar uma crise que exija dos garantes uma ação efetiva de qualquer natureza" (Matéria da Época).

Tal declaração foi imediatamente repudiada pela OAB que emitiu um parecer afirmando que "... é evidente a inconstitucionalidade da proposta de intervenção militar constitucional, com base no art. 142 da Constituição Federal, supostamente voltada a reequilibrar conflitos entre os Poderes" (Parecer da OAB).

Consta ainda no parecer da OAB que a Constituição estabelece que a atuação das Forças Armadas na garantia da ordem interna está condicionada à iniciativa de qualquer dos poderes constituídos, in verbis:

"Ao tratar da possibilidade de atuação das Forças Armadas para garantia da lei e da ordem, a Constituição flexibiliza o comando que atribui ao Presidente autoridade suprema sobre as corporações militares. Não cabe às Forças Armadas agir de ofício, sem serem convocadas para esse fim. Também não comporta ao Chefe do Poder Executivo a primazia ou a exclusiva competência para realizar tal convocação. De modo expresso, a Constituição estabelece que a atuação das Forças Armadas na garantia da ordem interna está condicionada à iniciativa de qualquer dos poderes constituídos. A provocação dos poderes se faz necessária, e os chefes dos três poderes possuem igual envergadura constitucional para tanto" (Pág. 11 - Parecer da OAB).

Ocorre que, quando analisamos os anais da Constituição da República, onde consta todas as discussões históricas a respeito da criação de cada dispositivo constitucional, verificamos que nos debates a respeito do Destaque nº 003.116-87, de autoria do constituinte José Genoíno (PT), discutiu-se sobre a histórica atuação das Forças Armadas como poder moderador, tendo o constituinte Gerson Peres afirmado que as Forças Armadas historicamente atuaram na defesa da ordem interna, in verbis:

"O SR. CONSTITUINTE GERSON PERES: – Sr. Presidente e prezados colegas, quem se dá ao necessário trabalho de fazer uma análise histórica do papel das Forças Armadas nas Constituições brasileiras desde 1824, vai verificar que elas sempre estiveram dentro deste mesmo processo de defesa de ordem interna. Nenhuma delas retirou as Forças Armadas desse processo" (Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento “C”) - Pág. 1.894 - Constituinte originário).

Nos debates dos constituintes a respeito do Destaque nº 003.116-87, de José Genoíno (PT), ficou claro o receio de muitos a respeito dos termos que seriam utilizados na Carta Constitucional para a definição das atribuições das Forças Armadas, tendo o constituinte José Genuíno tentado excluir a designação "lei e ordem" do atual texto do artigo 142 por permitir essa redação a atuação das Forças Armadas de forma mais abrangente, o que ele não queria permitir de forma alguma, in verbis:

"O que está em discussão é uma questão política de fundo. Ao se colocar ‘Lei e ordem’, o que se está dizendo com esta expressão? Quando se fala ‘ordem’, está se pressupondo o contrário da ordem, que é a desordem. Quando falamos ‘ordem’, estamos dando um sentido de que qualquer desordem pode justificar a intervenção das Forças Armadas – desordem social, desordem pública, desordem econômica – e isto quer dizer, em outras palavras, que as Forças Armadas podem cumprir, pelo texto constitucional do Substitutivo II, o trabalho que deve ser feito pela polícia, e por outra instituição" (Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento “C”) - Pág. 1.892).

O constituinte José Genuíno (PT) ficou vencido nesta questão, mas os debates se seguiram no tocante a quem poderia invocar as Forças Armadas e se ela teria o papel de poder moderador.

Nesta questão restou evidente que os constituintes queriam fugir da hipótese do reconhecimento expresso das Forças Armadas como um poder moderador, muito embora tenham rememorado a atuação histórica das Tropas nesse sentido, tendo o constituinte Gerson Peres afirmado que deveriam politizar as Forças Armadas, melhorando o relacionamento com o Congresso, a fim de evitar a ocorrência de golpes, tendo ele dito isto para defender a manutenção do texto original de autoria do constituinte Bernardo Cabral com a participação de Fernando Henrique Cardoso.

"O que temos é que trabalhar para politizar as Forças Armadas, para profissionalizá-las cada vez mais e aí sim, haveremos de ter um relacionamento maior. E no dia em que a classe política se dispuser a se relacionar mais com as Forças Armadas, aí nós não teremos mais golpes neste País. O distanciamento é que força aqueles que têm armas a depor os que não as têm e também, muitas vezes, o péssimo comportamento; o comportamento impatriótico da classe política força os quartéis a saírem com as armas e reporem esse comportamento dentro de um processo normal" (Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento “C”) - Pág. 1.894 - Constituinte Gerson Peres).

Conforme transcrito acima, o constituinte Gerson Peres defendeu a rejeição do Destaque de autoria de José Genuíno (PT), pois segundo ele "... o comportamento impatriótico da classe política força os quartéis a saírem com as armas e reporem esse comportamento dentro de um processo normal", sendo necessário, portanto, a manutenção do poder moderador executado pelas Forças Armadas.

Como sabemos, o texto final que consta em nossa atual Carta Magna diz que as Forças Armadas estão sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem, o que levaria a crer que as Forças Armadas poderiam ser invocadas por qualquer um dos Três Poderes em todas as hipóteses. No entanto, a interpretação deste artigo deve ser feita de modo separado, dividindo-se em duas partes:

1º parte - Sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais.
2ª parte - Por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

O constituinte originário não somente incluiu o poder moderador na Constituição de 1.988 ao afirmar que caberia as Forças Armadas a garantia dos poderes constitucionais (princípio da separação, independência e harmonia dos Poderes) que seria executada por meio da atuação das Forças Armadas, como também o constituinte originário deu ao Presidente da República a autoridade suprema sobre a Marinha, Exército e a Aeronáutica, ou seja, lhe outorgou o próprio poder moderador, segundo nossa interpretação do texto constitucional, e podemos extrair esta conclusão da fala final do constituinte Fernando Henrique Cardoso que afirmou o seguinte:

"E por que de um dos Poderes constituintes, um destes, não como estava na formulação anterior, ‘dos Poderes’? Porque um poder poderia, eventualmente, barrar outro, alegando que o texto constitucional requer os três em conjunto, e não há razão alguma para que este Poder soberano, que é o Legislativo, não possa requisitar as Forças Armadas, assim como não há nenhuma razão para que o Poder Judiciário não o possa fazer. Quem determina, quem pede, quem tem iniciativa, quem determina a hierarquia é o poder civil. E a hierarquia diz que as Forças Armadas obedecem a quem? Ao Presidente da República, que é eleito pelo voto popular direto. Fico, portanto, com o texto do Relator Bernardo Cabral e declaro enfaticamente que esse texto rompe com a teoria da tutela, dotando a nossa Constituição de um instrumento moderno, que não tapa o sol com a peneira, sabe que as Forças Armadas existem e que, em certos momentos, o poder civil precisa delas, mas que elas hão de ser silentes, obedientes e hierarquizadas ao poder civil, que se fundamenta no voto popular. (Muito bem! Palmas)" (Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento “C”) - Pág. 1.893 - Constituinte Fernando Henrique Cardoso).

O constituinte Fernando Henrique Cardoso explicou que na hipótese de um Poder eventualmente barrar o outro Poder qualquer um dos Poderes poderiam invocar as Forças Armadas, contudo, ele afirma categoricamente ao final de sua fala que as Forças Armadas devem apenas obedecer ao Poder Civil que é representado por uma única pessoa, o Presidente da República, eleito pelo voto popular.

Veja que no exemplo de Fernando Henrique não mencionou a hipótese do Poder Executivo ser o agressor barrando os demais Poderes, pois isso é uma hipótese remota de acontecer, considerando que a Constituição da República de 1.988 deu poderes exacerbados aos Poderes Legislativo e Judiciário que conseguem interferir um na função do outro, enquanto o Poder Executivo está totalmente esvaziado, não tendo como atrapalhar o exercício das funções precípuas dos outros dois Poderes, não se justificando, portanto, uma intervenção das Forças Armadas contra o Poder Executivo. Ademais, os Poderes Judiciário e Legislativo possui mecanismos constitucionais para excluir membros dos demais Poderes (impeachment e ação penal), enquanto o Executivo não possui a mesma arma de parâmetro constitucional.

Com isso podemos afirmar que se equipararam as armas, tendo cada um dos Poderes um mecanismo de moderação de poderes, sendo o impeachment o método de moderação de poder do Legislativo contra o Executivo e Judiciário; a ação judicial de cassação de mandato ou ação penal o método de moderação de poder do Judiciário contra o Executivo e Legislativo; e, as Forças Armadas o método de moderação de poder do Executivo contra o Judiciário e Legislativo, sendo esses métodos de moderação de poderes utilizados sempre que houver a ruptura da garantia dos poderes constitucionais, ou a violação a lei ou a ordem.

Já na segunda parte do artigo 142 que diz que as Forças Armadas poderão ser invocadas por iniciativa de qualquer dos Poderes para a defesa da lei e da ordem, sendo esta segunda hipótese aplicável para os casos que o constituinte José Genuíno (PT) queria proibir que se referem os casos de desordem social, desordem pública e desordem econômica, dentre outras.

Concluímos este breve texto afirmando que, através de uma interpretação histórica, os constituintes originários, representados por Bernardo Cabral e Fernando Henrique Cardoso, definiram a possibilidade de invocação das Forças Armadas como modo de execução do poder moderador do Poder Executivo, subserviente a vontade popular representada pelo Presidente da República que é o comandante supremo da Marinha, Exército e Aeronáutica, uma vez que, diferente dos demais Poderes, o Poder Executivo não tem nenhuma forma de excluir os membros dos demais Poderes, enquanto os Poderes Judiciário e Legislativo possuem mecanismos constitucionais que permitem a exclusão tanto do Chefe do Executivo, quanto dos membros do STF e dos membros do Congresso Nacional, sendo esta forma encontrada pelo constituinte originário para equilibrar a força dos Três Poderes.

Pierre Lourenço. Advogado. Diretor jurídico do Instituto Nacional de Advocacia-INAD.

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