É o fim do mundo

07/02/2016 às 02:18 Ler na área do assinante

A História só se repete como farsa, já dizia Marx, pois a roda de todo o universo está em eterno movimento no tempo e no espaço e afeta toda a humanidade. É assim com o tempo histórico e o presente do nosso mundo e das sociedades construídas pelo ser humano. 

Com esse olhar atento no horizonte, foco os tempos atuais carnavalescos. Antes, porém, retomo os idos de 1918-1919, período que teve dois acontecimentos marcantes. Um deles foi o fim da primeira grande guerra mundial e a consequente situação de ruína de diversos países europeus; o outro, a chamada Gripe Espanhola, uma pandemia do vírus influenza que se espalhou rapidamente e matou mais gente do que os combates de 1914 a 1918. Porque se chamou Espanhola, eu não sei. Mas, sei que foi arrasadora e, inexplicavelmente, desapareceu em poucos meses. As pessoas infectadas que não morreram, desenvolveram rapidamente anticorpos.

Essa gripe começou nos EUA e alastrou-se com ferocidade entre a tropas combatentes. Mais de 40 milhões de pessoas morreram em todo o mundo como resultado. Em setembro de 1918 ela chegou ao Brasil, através do transporte marítimo e provocou mais de 300 mil mortes, incluindo o presidente da república Rodrigues Alves no ano seguinte. Em Corumbá, como em outras epidemias, chegou através do rio Paraguai. Por isso, foi retomada a prática de épocas anteriores, quando houve epidemias na cidade (e foram muitas), para que os navios aportassem longe do cais do porto fluvial. Mas, isso nunca impediu que as doenças se alastrassem. Os mais abastados recolhiam-se às fazendas pantaneiras em quarentena até o perigo deixar de existir na cidade. O resto da população, sem alternativa, enfrentava todos os riscos e consequências. Li num antigo informe médico que uma estratégia para amenizar a doença era o costume de queimar tijolos e coloca-los quentes, ainda exalando fumaças, dentro das casas. Era totalmente inócuo e a mortandade seguiu implacável.

O fato curioso nesse contexto de crise na saúde pública do Brasil, foi o carnaval de 1919, em especial, no Rio de Janeiro. Segundo registros da época, e posteriores, foi uma loucura coletiva. Os sobreviventes da Gripe Espanhola viram na tradicional (e oportuna) folia de Momo uma maneira de extravasar suas angustias e seus medos diante do imponderável e do inevitável. Em muitos escritos sobre o cotidiano da época há registros impressionantes desse desvario popular, ainda precisando ser mais pesquisado e explicado.  Na memória coletiva e em alguns relatos nos jornais, ficaram a lembrança de verdadeiras orgias nas ruas e nos folguedos carnavalescos, como uma tentativa desesperada de aproveitar a vida tão efêmera e esquecer a mortandade e os sofrimentos. Muito embora não tenha sido feita uma contagem precisa, é fato que nasceram algumas centenas de “foliãozinhos” após nove meses, um verdadeiro baby boom. O Rio de Janeiro de 1919 foi, segundo cronistas, uma festa de arromba. 

Passados quase 100 anos, vejo na televisão um carnaval de rua diferente e animadíssimo, com uma massa de foliões, blocos formados espontaneamente pulando e divertindo-se independentes da programação oficial, como se o mundo fosse acabar.  O carnaval das escolas de samba, com seu luxo e gastos extraordinários, mas de certa forma elitista por separar o “povão” preso às arquibancadas, por incrível que pareça, tem a aparência de uma festa anacrônica. De fato, esse carnaval de show e luxo custa muito caro e o dinheiro está escasso. Além do mais, hoje existe a figura do “japonês da Federal” colocando os donos dos negócios escusos, que financiam esse espetáculo carnavalesco, com as barbas de molho.

Agora o que prevalece é o carnaval de rua bom, bonito e barato. Mas, pensando bem, diante dos tempos bicudos atuais a folia desvairada não seria uma manifestação semelhante ao carnaval do desespero de 1919?

Neste momento, vivemos sob o espectro de uma “pandemia” alastrada por diversas partes do mundo, causada pelo Zica virus, com a trágica consequência da microcefalia em bebês cujas mães contraíram a doença. O vetor do Zica é um pequenino e conhecido mosquito, o aedes aegypti, mas os grandes vilões desta história são as autoridades governamentais e sanitárias que não cumpriram o seu papel na prevenção da doença. 

No começo era só a Dengue que, curiosamente em tempos idos foi considerada extinta. Mas o combate ao mosquito em épocas de crise aguda e as medidas de profilaxia específica só eram aplicadas nas ocasiões dos surtos; depois caia no esquecimento. Apurou-se também o surgimento da Dengue Hemorrágica e agora a Zica, que segundo notícias em jornais norte-americanos pode ser transmitida através de relação sexual. Além disso, não posso deixar de registrar a nova expansão da Gripe A1H1 que voltou a provocar muitas mortes, incluindo Corumbá onde se contam um óbito e mais de seis pessoas infectadas isoladas no hospital local.

Acrescenta-se a tudo isso a brutal crise financeira e política, nunca antes vista neste país, com uma massa de desempregados e aumento da miséria e quebradeira de empresas pequenas, médias e grandes. Sem dinheiro, podendo ficar doente e até morrer de uma hora para outra, com uma saúde pública falida e perdendo a esperança, essas pessoas tentam driblar a angustia do dia a dia, caindo de boca na folia do carnaval como se não existisse o amanhã.

Como em 1919, o que virá daqui a alguns meses?

Valmir Batista Corrêa

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Valmir Batista Corrêa

É professor titular aposentado de História do Brasil da UFMS, com mestrado e doutorado pela USP. Pesquisador de História Regional, tem uma vasta produção historiográfica. É sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de MT, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de MS e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.

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