“Não é possível continuar aceitando a opulência e o desperdício, quando o drama da fome adquire cada vez maiores dimensões”. ( Papa Bento XVI)
Debruçando-nos na amurada do tempo podemos verificar que a fome é um flagelo com origem nos primórdios da civilização.
“O discurso do faminto é o seu próprio ato de comer a comida. É diminuindo a necessidade que maltrata que ele fala. É a partir desta coisa concreta –comida - que responde a esta outra igualmente muito concreta – a fome – que o faminto pode, inclusive, preparar-se para, compreendendo melhor ou começando a compreender a razão de sua fome, se engajar na necessária luta contra a injustiça.. Mais ainda, engajando um sem número de pessoas que comem, que vestem, que ouvem música e vivem bem, a campanha necessariamente moverá a muitos, mudando-lhes a maneira de ver e de pensar o Brasil”. (FREIRE, Cartas a Cristina Reflexões sobre minha vida e minha práxis, 2ª ed. São Paulo: Editora UNESP,2003).
Apesar de o seu espectro ter predominado tão intensamente ao longo dos milênios, as gerações pretéritas temiam abordar tal tema, dissimulando a existência da alta densidade de população faminta.
Esta atitude era determinada pelo egoísmo, pela carência de solidariedade. Tem sido uma característica humana, no evoluir da história, revelar mais as riquezas terráqueas, as vitórias e as glórias dos seres humanos que as carências, os dissabores e as derrotas.
Não há como esconder, a fome é o flagelo número 1 do mundo. Todos querem combater a fome na África, na Ásia, no Brasil, em todos os cantos onde possa haver uma criança que não usufrua do direito de se alimentar e crescer. Fome zero.
De democratas a ditadores, a intenção é única: erradicá-la. Não há como manter um ser vivo com fome.
Posto isso, passo para o terreno das metáforas, que sempre nos coloca frente a frente com a ambiguidade das situações. Tendo pão e manteiga à mesa, um copo de leite, alguma proteína e vitamina, ainda assim uma criatura bem alimentada pode seguir faminta e isso lhe salvar a vida.
Não há razão para se existir com fome, mas tampouco sem fome. Alguma fome é necessária. É o que nos dá energia para levantar todos os dias.
Você tem fome de quê, perguntava uma letra de rock. De paixão, responde a maioria.
Há milhares de casais que se amam e que não compreendem a razão de seguirem insatisfeitos, já que a vida lhes foi tão boa e generosa. Falta-lhes paixão, que é coisa bem diferente de amor.
Paixão mantém a falta de gravidade do corpo, os pés longe do chão, a vida de ponta cabeça, prazer e vertigem, o sim e o não convivendo no mesmo espaço de tempo. Paixão: a causa de tantos desacertos comemorados com champanha, depois das lágrimas.
A raridade de sentir-se vivo como nunca se desejou conscientemente, porque a gente sabe o tamanho da encrenca. Paixão é uma fome hemorrágica: de sangue e coração. Milhares morrem pela carência, e outros tanto vivem justamente por mantê-la como uma gula feroz: é a fome mais gloriosa.
E há a fome de vida, que é ainda mais aguda. Além de incorporar a fome por paixão, inclui a fome contraditória por liberdade, e também a fome por conhecimento, a fome pelo êxtase, a fome de sol.
Uma pessoa que atingiu a saciedade não percebe que jaz embaixo da terra, ainda que se mantenha como um zumbi caminhando sobre ela. Morre-se de fome, mas também se morre por não ter fome.
A fome é mais violenta que o desejo. Este está aliado à vontade, é uma intenção que mistura o emocional com o racional, já que a gente deseja com o cérebro também.
A fome, ao contrário, não pensa. Não dialoga, não negocia. É instintiva, febril. A fome é um grito de “eu quero”, “eu preciso”, sem levar em consideração tudo o que está ao redor.
A fome nos expulsa da sociedade, nos desloca de toda civilização e nos isenta de todos os pecados. Voltamos à natureza mais primitiva. A luta por esse tipo de sobrevivência nos redime de qualquer culpa e de qualquer racionalidade. É uma necessidade vital. Como se fôssemos ursos, leoas, guepardos. Não há lei regendo nossas ações predatórias, de subsistência. Você precisa, você luta, e se tiver sorte, vence.
Olho para os lados e vejo pessoas atracadas em pratos de macarrão, sem fome alguma, devorando carnes, bolos, doces, sem que a vida lhes pareça igualmente suculenta. Não vão morrer de fome de comida, mas alguns correm o risco de morrer antes do tempo, saciados pelo seu vazio.
Recentemente no continente africano, as crianças da província de Bié pediram aos governos africanos para desenvolverem programas visando acabar com a fome, miséria e outros males no continente, a fim de oferecer-lhes uma vida mais condigna e a respeitarem os seus direitos e deveres.
Em uma carta aberta lida por um dos menores, no dia 16 de junho, “Dia da Criança Africana”, eles também falaram sobre a necessidade dos governos africanos enquadrarem mais professores, sobretudo nas localidades mais distantes das grandes cidades, de modo a erradicar o analfabetismo e desenvolver o continente.
Aproveitaram ainda a oportunidade para enaltecer, por outro lado, o esforço empreendido pelos diversos governos, agências especializadas das Nações Unidas e ONG, com destaque para o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), na luta contra a violência e defesa dos direitos das crianças, do analfabetismo e doenças.
A sensibilidade cristã não mais suporta esse escândalo.
Há algo de errado. Trata-se de um fenômeno que não é inesperado como uma inundação e que se abate sobre vastas regiões com população já depauperada.
O eufemismo da subnutrição esconde esta realidade hedionda, execrável e vergonhosa.
Acresce outro drama: a miséria extrema traz em seu bojo germes do desfibramento que afetam não só o corpo mas o próprio caráter. A luta pela sobrevivência física arrasta consigo males morais incalculáveis.
Traumatizam-nos as frias críticas dos que insistem em transferir a culpa de um para outro, retardando uma ação mais eficaz. Enquanto isso, morrem de inanição filhos de Deus, irmãos nossos, e, entre eles, crianças inocentes que sucumbem.
Para quem desconhece o escândalo da pobreza e não sente na carne o aguilhão da fome ou ignora a diferença entre a criatura humana e os irracionais, é fácil optar por soluções cômodas, aquém das verdadeiras causas do flagelo, que já atinge mais de 1,2 bilhão de pessoas.
Para refletir : “Fome e guerra não obedecem a qualquer lei natural - são criações humanas.” (Josué de Castro)
"Quem tem pressa, tem fome.(Betinho)
Pio Barbosa
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Pio Barbosa Neto
Articulista. Consultor legislativo da Assembleia Legislativa do Ceará