Sob o manto da impunidade

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Da violência

Do rio que arrasta se diz que é violento,

mas ninguém diz violentas

as margens que o comprimem.

Bertold Brecht

Omissão e impunidade são formas de violência. Em especial, quando se trata da coisa pública e da responsabilidade de autoridades que foram escolhidos direta ou indiretamente para cuidar da população e da região que administram.

Vejo e ouço muitas autoridades referirem-se às trágicas enchentes que trazem destruições em várias partes do Brasil como desastres ou catástrofes naturais. Fico a pensar se São Pedro é tão ruim a ponto de provocar tragédias de tamanhas proporções ou, como dizem, tudo é culpa do “El Niño”.

De fato, as enchentes são ocorrências naturais em épocas das chuvas torrenciais de verão. Estive no sul do Estado e constatei pessoalmente a destruição de estradas e pontes em vários municípios. São manifestações da própria natureza, muitas delas em decorrência das mudanças climáticas que tem, com certeza, o dedinho do homem com grandes prejuízos para toda a humanidade e para o planeta. Mas entendo também que a ênfase na expressão desastre natural pode ser uma forma sub-reptícia e escamoteada de eximir outros grandes responsáveis pela tragédia.

O que não aceito como natural é a quantidade de mortos, feridos e prejuízos que ocorrem a cada ano e cada vez com maior intensidade. É aí que vejo a responsabilidade das autoridades e políticos de todos os níveis que expõem ao perigo uma grande parcela da população, em sua maioria oriunda da pobreza.

A conivência das prefeituras omissas em relação aos assentamentos clandestinos, para moradias nas encostas dos morros e nas margens de rios, cresceu de maneira assustadora. Além disso, interesses eleitoreiros impediram a tomada de medidas impopulares como a retirada dessas famílias das áreas de risco. Agora que Inês é morta e que o leite foi derramado, os atuais governantes serão obrigados, pelo clamor popular, a tomar medidas há muito tempo postergadas.  Não posso deixar de registrar a recente e incomensurável tragédia ocorrida na avalanche de rejeitos na região das Gerais, cujos culpados somente tem um caminho: indenizações justas e cadeia.

Entendo que o exemplo deve vir de cima, através de medidas e legislação federais que estimulem prefeitos e vereadores a desenvolver políticas públicas para amenizar tantas perdas, começando com um programa de moradias para as famílias removidas de seus lares pelas águas e avalanches de lama. Como o povo não é brincadeira, é preciso tomar também medidas severas para impedir que outros reocupem os mesmos lugares de risco. Nos últimos anos, infelizmente, nos governos estendidos de FHC, de Lula e de dona Dilma, pouco ou nada foi feito para resolver estes graves problemas. Entretanto, os interesses de banqueiros e de grandes empreiteiros não foram descurados.

Com a comoção nacional, que ainda motiva em todos os momentos belas manifestações de solidariedade em todos os cantos do país, veio em boa hora a aprovação da revisão do Código Florestal (2012). Aparentemente pode ser uma legislação adequada, mas, na contramão da correnteza, pode também legalizar áreas de riscos e com isso criar condições para novas tragédias. É uma legislação capciosa que não considera topo de morros como área de preservação, além de liberar a construção de moradias em suas encostas. Espero que os representantes federais tenham consciência cívica e façam um acompanhamento desta barbaridade. Fica então uma pergunta no ar: a quem interessa uma legislação deste tipo?

Dizem que quando não se quer resolver um problema, nomeia-se uma comissão. Portanto, espero que o mesmo não ocorra frente à recente tragédia de Mariana e as enchentes que vem arrastando tudo no sul do Brasil. No primeiro governo da dona Dilma criou-se um Sistema Nacional de Alerta e Prevenção de Desastres Naturais como uma roupa nova para um órgão criado em 2005, que eu, como um pobre mortal, nunca soube de suas ações. Como este plano devia funcionar completamente apenas em 2014, não posso imaginar o que aconteceu nos verões seguintes. Ou posso?

Como em outras regiões do país, não se pode negligenciar a existência de áreas de risco em Mato Grosso do Sul. Além de sujeitas às enchentes, é preciso olhar com carinho para as morrarias, com suas casinhas precárias agarradas em suas encostas, em Corumbá.

Depois que a casa cai não adianta culpar São Pedro.  Os verdadeiros culpados seguem impunes.

Valmir Batista Corrêa

                                                             https://www.facebook.com/jornaldacidadeonline

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Foto de Valmir Batista Corrêa

Valmir Batista Corrêa

É professor titular aposentado de História do Brasil da UFMS, com mestrado e doutorado pela USP. Pesquisador de História Regional, tem uma vasta produção historiográfica. É sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de MT, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de MS e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.

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