A insensibilidade dos homens: Salvem Água Rica

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Em recente evento da Feira da Bolívia, em Campo Grande, recebi do meu amigo Sergio Maidana

um adesivo para carros com os dizeres “#SalvemÁguaRica”. É uma campanha que eu vinha acompanhando pelas redes sociais em defesa de um significativo patrimônio histórico de Mato Grosso de Sul. Pois bem. Contei a ele a minha vinculação afetiva com o Restaurante Água Rica, às margens da BR 163.

Sem admitir que estou idoso (apenas acumulo experiências), hoje sou um homem de muitas histórias. Eis uma delas. Quando vim pela primeira vez a Mato Grosso, em 1971, motivado pelo convite para ministrar aulas no antigo Centro Pedagógico de Corumbá (na época Universidade Estadual de Mato Grosso), peguei um velho ônibus noturno da Viação Mato Grosso em direção a minha grande aventura. Ao amanhecer, o ônibus parou em um local, para um lanche, numa simpática construção de madeira a beira do nada. Era o famoso Restaurante Água Rica, muito conhecido na região pelo seu pão de queijo. Demonstrando a minha ignorância geográfica, perguntei à moça do caixa se estava longe de Corumbá, meu destino final. Surpresa, ela disse sorrindo: “moço, o senhor vai chegar lá somente à noite”. Era o meu batismo de fogo na imensidão mato-grossense.

A história desse velho restaurante remonta os idos da década de 50 do século passado, quando um aventureiro sonhador, Franklin Dias de Castro, caminhoneiro, comprou aquelas terras ao lado de uma mina d’água, para oferecer alimentos aos corajosos passageiros que desafiavam a rodovia de terra batida. Agora, em nome da modernidade, o governo federal pretende duplicar a rodovia, praticamente matando o veio d’água, espremendo e asfixiando o referido restaurante. Na outra margem da estrada seria preciso construir um aterro, onerando assim a construção da duplicação. 

Esta luta é apenas mais um desafio aos que lutam em nome da preservação do patrimônio histórico e da memória afetiva do estado. Uma luta nem sempre vitoriosa, mas que é preciso persistir.  É de triste lembrança outra luta perdida, a truculenta retirada em Campo Grande, na calada de uma madrugada, dos trilhos da Noroeste por uma retroescavadeira. Apesar disso, esta luta encabeçada por intelectuais e pessoas ligadas à cultura foi parcialmente exitosa, porque em 13 de maio de 1996 houve o tombamento do complexo ferroviário que hoje é a bela esplanada da Noroeste,

importante sítio turístico e cultural da cidade. 

Este foi o caso típico da insensibilidade de um prefeito, desrespeitando a normas legais e mandando arrancar os trilhos, permanecendo impune. Casos recorrentes ocorrem ainda em nosso estado desrespeitando a preservação do patrimônio histórico e cultural e regional. Como existem em grandes cidades da Europa, os trilhos estariam hoje sendo utilizados como transporte urbano de massa, barato e sem poluição, cortando a capital de uma ponta a outra.

Por esta mesma época, o patrimônio da estrada de ferro Noroeste do Brasil já havia sido desmontado pela sanha neoliberal do governo FHC em privatização de grandes empresas nacionais. Antes dessa triste época, prefeitos retiraram os relógios instalados em Campo Grande e Corumbá, restando apenas o de Três Lagoas.

Ainda falando da insensibilidade e da ganância humana, não poderia deixar de registrar o maior crime contra o patrimônio histórico ocorrido em Corumbá nos inícios dos anos 70. Lá existiu, talvez, o mais belo prédio construído em fins do século dezenove em todo o entorno do rio Paraguai. Uma construção única, de 1911, onde foi instalada a Prefeitura Municipal e depois as dependências dos Correios e Telégrafos. O seu proprietário queria derrubá-lo e para fazer frente a esse desatino participei junto com Gilberto Luiz Alves de uma campanha de conscientização da população pela sua proteção. Na época, falava-se que os professores do Centro Pedagógico não queriam o progresso da cidade e que era preciso erguer prédios novos e modernos em lugar das velharias, que na verdade eram maravilhas arquitetônicas. Pessoas comentavam que se tratava de uma “infiltração comunista” contra os interesses da cidade. Aliás, esse era um argumento eficiente nos tempos da ditadura para escamotear interesses pouco justificáveis e até encobrir tenebrosas transações de autoridades ou simpatizantes do regime.

O proprietário do prédio, que tinha a convicção de um desequilibrado, chegou a protagonizar voos rasantes com um pequeno monomotor, dando tiros encima do prédio do Instituto Luiz de Albuquerque que abrigava as salas de aulas do antigo centro universitário. O prédio foi destruído, dando lugar a um horrendo caixote, mas em compensação acendemos a pequena chama que hoje incendiou os corações dos corumbaenses em defesa do seu patrimônio histórico. 

Porém, a luta deve continuar e agora “SalvemÁguaRica”.

Valmir Batista Corrêa

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Foto de Valmir Batista Corrêa

Valmir Batista Corrêa

É professor titular aposentado de História do Brasil da UFMS, com mestrado e doutorado pela USP. Pesquisador de História Regional, tem uma vasta produção historiográfica. É sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de MT, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de MS e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.

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