Sigilo bancário e fiscal. Uma questão simples, mas que pode render semanas ou meses até a decisão final do STF
21/11/2019 às 20:44 Ler na área do assinanteComo foi cansativa, longamente desnecessária e irritante, a primeira sessão de votação desta quarta-feira (20), pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), do Recurso Extraordinário que decidirá - com peso de lei, em razão da repercussão geral que o resultado do julgamento lhe empresta - se o Coaf (hoje, UIF) e demais instituições públicas incumbidas no combate à corrupção, à lavagem de dinheiro e de tantos outros crimes que vitimizam o país e o povo brasileiro, se lhes competem enviar relatório e informações às Polícias e às Promotorias Públicas sobre movimentação ou movimentações financeiras suspeitas e que foram detectadas.
E ninguém pode garantir quando o julgamento estará definitivamente concluído. Enquanto isso, 935 investigações estão suspensas no país inteiro!.
Dias Tóffoli, ministro-presidente da Suprema Corte e relator do recurso, passou a sessão inteira (parte da manhã e parte da tarde) lendo o relatório e o seu voto. Assim começou e assim terminou este primeiro dia. Ninguém mais votou.
E era visível o tom irritadiço do ministro Tóffoli que não foi nada, nada, cortês e reverente com o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, há 45 dias no cargo.
As perguntas que Tóffoli dirigiu a Aras deixou a impressão de um juiz interrogando um acusado. E acusado sem culpa. Acusado humilde. E muito lembrou o "Santo Ofício". Me vieram à mente os longos interrogatórios a que sujeitou Joana D'Arc e que estão narrados em livros e mostrados em filmes. Ainda assim, o doutor Aras não perdeu a elegância e a altiva modéstia. Em nenhum momento, em nenhuma resposta ou intervenção que fez, externou exaltação. Do doutor Augusto Aras até esperei que pedisse que fosse tratado à altura do cargo que ocupa. Que as perguntas lhe fossem feitas com brandura, sem precisar afeto. Mas nem isso o Procurador-Geral da Republica pediu.
Em razão do pouco tempo em que está no cargo de Procurador-Geral da República o doutor Aras teve dificuldades para responder, à exatidão, às perguntas do ministro-presidente. E quando isso acontecia, ele próprio, o ministro-relator Tóffoli, dava ou interpretava a resposta (ou o silêncio, a resposta hesitante ou incompleta) do doutor Aras. O que era para ser sereno, harmonioso, cordial e maximamente reverente, como seria se o presidente fosse Ayres Brito... não foi.
E o voto do ministro-presidente e relator, Dias Tóffoli não precisava ter sido tão longo, a tomar conta de uma sessão inteira. Ninguém põe em dúvida o altíssimo conhecimento jurídico e a ilibada conduta de Dias Tóffoli. Caso não os ostentasse não seria ministro da Suprema Corte. Todos que lá tiveram assento e que lá têm assento hoje, e que amanhã e sempre terão, são os mais notáveis deste Brasil de notabilíssimos juristas pátrios. Um destes, Hely Lopes Meirelles, nos deixou escrito no seu clássico "Direito Administrativo Brasileiro" que "a primazia do interesse público sobre o privado é inerente à atuação estatal e domina-a" (42a. Edição, Malheiros Editores, 2016, página 113).
Todos os Administrativistas nacionais, sem exceção, também doutrinam no mesmíssimo sentido de Hely. E é justamente isso - e nada mais do que isso -, que está em causa neste Recurso Extraordinário que o plenário do STF começou a julgar nesta quarta-feira (20).
Ou seja: a fraude, a trapaça, o crime que a pessoa (física e/ou jurídica) comete contra o erário nacional (a coletividade, portanto) pode se sobrepor ao interesse público, a ponto de ser protegido pelo sigilo bancário e fiscal de quem o cometeu?. Ou o servidor público (os funcionários da UIF, da Receita Federal e demais órgãos congêneres..., por exemplo) e/ou a própria instituição, como é a hoje UIF, comparada por Tóffoli a uma "Agência de Inteligência" ,que do delito tiver conhecimento, deve ficar calado e não enviar o que apurou às autoridades competentes?
Pois é justamente isso - e nada mais do que isso - que está em causa nesse julgamento do STF. O resto é firula. É contorcionismo jurídico. E em boa hora o voto do ministro-presidente e relator acolheu e deu provimento ao Recurso Extraordinário e decidiu que sim. Que a UIF pode e deve compartilhar o "relatório administrativo" com as promotorias públicas a quem incumbirá examinar, investigar o material recebido e, se necessário, pedir ao juiz autorização para a quebra do sigilo bancário (e fiscal) do suspeito (ou suspeitos), ante a existência de indício que beira à certeza de que crime (ou crimes) foram cometidos.
Aliás, assim também determina o Código de Processo Penal (CPP). Um juiz não pode ficar inerte quando, nos autos do processo que preside, ou em papéis que deles conhecerem, constatar a existência de crime de ação pública. Neste caso, é dever do juiz fazer a remessa de tudo ao Ministério Público para que a promotoria adote as providências que entender cabíveis. Eis o teor do artigo 40 do CPP:
"Quando, em autos ou papéis de que conhecerem, os juízes ou tribunais verificarem a existência de crime de ação pública, remeterão ao Ministério Público as cópias e os documentos necessários ao oferecimento da denúncia".
Ora, juiz de direito é tão funcionário público quanto são os da Receita Federal, do Coaf (hoje Uif), dos Tribunais de Conta, e outras instituições públicas .... E este imperioso dever de fazer prevalecer o interesse público sobre o privado sobre todos recai. A ninguém é dado o direito de calar a verdade que conhece e sabe. Mais ainda quando está em causa interesses coletivos, difusos e de toda a Nação. E tudo isso independe da existência de lei, em que sentido for.. É dever natural. É dever da civilização. É dever de toda a Humanidade.
Jorge Béja
Advogado no Rio de Janeiro e especialista em Responsabilidade Civil, Pública e Privada (UFRJ e Universidade de Paris, Sorbonne). Membro Efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB)