Quando foi publicado pela primeira vez em 1986, “Evitando a Saúde e Promovendo a Doença”, de autoria do médico comunista brasileiro Jayme Landmann, já se haviam passado quase oito anos desde que a cidade de Alma Ata, na antiga União Soviética, tinha sediado a Primeira Conferência Mundial de Saúde. Desde 1978, quando a definição daquilo que se chama saúde passou a ser ditada pelo entendimento e interpretação de médicos marxistas como Sérgio Arouca e Landmann, nunca mais a história da saúde pública no Brasil (nem no Mundo) foi a mesma.
Existem dogmas, existe um entendimento religioso daquilo que vem a ser “Saúde Pública”, cujo questionamento tornou-se pecado para população geral e crime para os “profissionais de saúde” que dentro de muito pouco tempo, eu assim imagino, terão trechos da Lei 8080/90 copiados para os seus respectivos Códigos de Ética.
Não existe saúde pública. Nenhuma população tem “saúde”; são as pessoas, são os seres humanos que formam aquilo que chamamos população, que tem ou não tem algo que arbitrariamente alguém decide chamar ou não de saúde.
Nunca mais, depois de 1978, houve alguma dúvida sobre aquilo que venha a ser saúde. Saúde passou a ser, PARA SEMPRE, “o estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não simplesmente a ausência de doença ou enfermidade - é um direito humano fundamental, e que a consecução do mais alto nível possível de saúde é a mais importante meta social mundial, cuja realização requer a ação de muitos outros setores sociais e econômicos, além do setor saúde.” Não escreveram que “ter saúde é ser feliz”, mas poderiam perfeitamente tê-lo feito.
Veja o leitor, portanto, que mesmo antes de dizer o que ERA saúde a Conferência realizada na União Soviética decretou o que ela deveria PASSAR a ser e o que ela DEVE passar a ser é um conceito que envolve três dimensões – a Política, a Economia e Justiça.
Alma Ata define a saúde como um “obrigação do Estado” que envolve as demais áreas dele como parte de um contrato social em si mesmo, que envolve investimento financeiro, e que é um “direito” humano fundamental. Estabelece ainda, numa frase que poderia muito bem fazer parte da “Fenomenologia do Espírito”, de Hegel, que a “saúde é a mais importante meta social mundial”!
No terceiro parágrafo deste pequeno artigo, quem me seguiu até aqui leu que “não existe saúde pública” porque nenhuma “população”, e sim as pessoas, é que tem ou não algo chamado saúde. A seguir foram feito alguns comentários críticos sobre a definição criada em Alma Ata, na antiga União Soviética, sobre o que seria saúde, mas é evidente que um texto como este só poderia ser intelectualmente honesto e não se assentar em críticas vazias se eu apresentasse ao leitor a MINHA definição do que vem a ser saúde.
Por princípio ofereço ao leitor algo que lhe parecerá “vazio”, que soa como “pegadinha” ou “palavra lançada ao vento” - digo que saúde é uma “dimensão da vida humana”.
Sentindo que “ficou na mesma”, pergunta o leitor: “Sim, e daí, o que você quer dizer com isso? O que é para você a “vida humana”??
Respondo eu - “Ah, quer dizer então que você não sabe o que é vida??”
“Não, não sei..” responde com honestidade o leitor deste pequeno texto.
Volto à carga e pergunto – “Então é curioso: vejo que você não sabe definir com certeza absoluta o que é a vida de um ser humano, mas não hesita, por um minuto sequer, em dizer que sabe o que é saúde...é isso??”
Aí eu tenho certeza de que uma pessoa minimamente honesta do ponto de vista intelectual fica sem reposta. Fica sem resposta porque (e agora eu vou colocar a questão em linguagem acadêmica para quem tem um mínimo conhecimento de Filosofia) TODAS as definições de saúde que nos foram oferecidas até hoje por médicos, filósofos, psicólogos, políticos, cientistas sociais e operadores do Direito, são comentários, são observações feitas a respeito de acidentes; não da substância, do conceito em si, daquilo que podemos chamar de “vida”.
A vida de um ser humano é, e aqui não é uma provocação nem um proposta para debate, é uma afirmação minha – um FENÔMENO, uma dimensão disso que chamamos de existência, de algo maior que nos leva, na Filosofia, a discussão do que é o “Ser”.
A vida de cada um de nós é uma experiência única, incapaz de ser compartilhada completamente por mais estáveis que sejam nossas instituições, nossa cultura ou amor um pelos outros, é um fenômeno que transcorre num período limitado de tempo nesta terra e que possui, do ponto de vista bioquímico, histológico, anatômico, fisiológico, psicológico, enfim, em qualquer área daquilo que chamamos com desprezo de “ciência básica”, uma complexidade, uma riqueza de mecanismos e reações tão gigantesca que se torna patético falar em “atenção básica” necessária à manutenção de seus processos e resultados normais.
Mais do que a complexidade orgânica e psicológica de cada ser humano, é a diversidade (e vejam que estou usando aqui um termo caro, muito querido dos médicos marxistas) a multiplicidade de formas e interações com o meio e entre si mesmos que tornam os seres humanos impossíveis, sob qualquer aspecto, de serem agrupados em populações suficientemente homogêneas que possam ser definidas como absolutamente saudáveis.
Quando escreveu “A Nova Ciência da Política”, em 1979, o filósofo e professor Eric Voegelin chamou a atenção de quem se dedicava à Filosofia da História e à Filosofia Política no século XX dizendo que toda Teoria Política é uma Teoria da História e que é a realidade do homem na sua condição, no mundo em que ele está, que deve determinar o método de investigação capaz de dizer em que se baseia a Ordem que ele dá a sua existência na Terra.
Ao criar e oferecer ao Mundo uma nova Filosofia da História, Voegelin elaborou feroz crítica àqueles que fizeram da possibilidade do uso das ciências matematizantes o critério de importância que uma determinada questão, uma determinada investigação e seus resultados, estavam adquirindo nas sociedades, nas chamadas democracias ocidentais.
Embora Voegelin jamais tenha escrito (até onde sei) uma linha sequer sobre Epidemiologia Clínica, sobre Bioestatística e a importância que elas estavam adquirindo na produção científica do meio médico – lembro que Voegelin nasceu em 1901 e morreu em 1986 – tenho certeza absoluta de que se vivo ele estivesse, não se furtaria de fazer deste fenômeno mais um exemplo a ser citado em suas obras.
Depois de 1979 e até a data deste pequeno artigo, toda formação médica no mundo ocidental tem como base a definição de saúde criada na União Soviética e toda produção científica que pode ser publicada nisso que os médicos chamam de periódicos “com impacto” tem critérios extremamente rígidos derivados, em seus fundamentos, da Filosofia da Ciência de Karl Popper – a quem, diga-se de passagem, Voegelin criticou severamente por ocasião da publicação de “A Sociedade Aberta e Seus Inimigos” e outras obras não tão conhecidas.
O que não pôde ser imaginado por Voegelin, Popper ou mesmo pelo Dr. Sérgio Arouca - o médico brasileiro, deputado comunista e assessor para saúde durante a Revolução Sandinista na Nicarágua que praticamente “criou o SUS no Brasil” - é que um dia toda Epidemiologia Clínica, toda Bioestatística e matematização da produção científica na Medicina Mundial serviriam à desconstrução da ideia do ser humano como indivíduo, e para apologia da Medicina das Populações e da Medicina Política.
A Medicina no Brasil atual, no Brasil do “Mito” que foi eleito para salvar a Nação do delírio Bolivariano e de tornar-se uma futura Venezuela, vive hoje uma tragédia – uma tragédia em que a Medicina é Política ou Matemática, mas que não pode ser, jamais, Humana.
A dimensão humana, a dimensão individual da vida humana capaz de definir a própria condição nesta terra, morreu para sempre. Toda saúde é uma saúde “básica”, toda saúde é uma saúde de populações. A união do marxismo com a epidemiologia clínica terminou, encerrou o trabalho dos verdadeiros médicos.
A Saúde foi dividida, e assim parece que será para sempre, em “básica, intermediária e avançada” quando sua dimensão substancial, sua própria essência como parte da condição humana, só permite duas “divisões” - completa e incompleta.
Encontramos no Brasil, e nisso o Governo Bolsonaro e aqueles que ele colocou dentro do Ministério da Saúde foram muito mais “competentes” do que o Regime Petista, a justificativa moral para oferecer aos pobres que dependem do SUS a “atenção básica em Saúde Pública”.
Esquecemos, fazemos questão de não lembrar, que só pobre tem necessidade de “atenção básica em saúde” - todos os demais, inclusive aqueles que defendem a “atenção básica” dentro do Conselho Federal de Medicina e da Associação Médica Brasileira, fazem questão de uma “atenção completa”.
Milton Pires
Médico cardiologista em Porto Alegre