Cena 1
Em fevereiro, uma modelo começa a conversar via Instagram com um jogador de futebol famoso e milionário.
No whatsapp, a modelo e o jogador fazem estrepolias, o jogador em Paris e a moça no Brasil.
As conversas viram logo um jogo sexual, com direito à sacanagem que é típica nesses casos, sinal dos tempos.
Finalmente, no dia 15 de maio, a modelo vai a Paris encontrar o jogador, tudo pago por ele.
O objetivo claro, reconhecido por ela própria, era o de transar com o jogador, seu ídolo.
Em Paris, o pacto rola, mas algo sai errado.
A moça volta imediatamente ao Brasil, perturbada, e acaba denunciando o jogador famoso e milionário por estupro.
O caso gera comoção nacional, com direito à resoluções espantosamente rápidas pela justiça, advogados demitidos, escoltas policiais para acompanhar a moça em seu depoimento, alvoroço na imprensa nacional e internacional.
A grande mídia parou o que estava fazendo para se dedicar ao assunto.
Tudo é esquecido, a prioridade é o imbróglio do jogador.
Cabeça de jornalista da Globo balança no pescoço, por suspeita de tentativa de negociação no caso, tentando abafar o lance pra ganhar com a informação. Coisa de gangster.
O país entra em catarse, com direito até de visita de apoio do presidente ao ídolo acusado.
Corta.
Cena 2
No dia 26 de maio, uma estudante feliz acaba de prestar vestibular longe de sua cidade.
Sai a noite sozinha da faculdade onde acaba de prestar prova e manda uma mensagem pelo celular para uma amiga, contando que havia ido bem no exame.
A cidade é Sorocaba, e está deserta a essa hora.
A menina caminha e minutos depois é atacada por um homem desconhecido, Paulo Cesar Manoel.
Criminoso notório, preso várias vezes por assaltos e estupros e beneficiado com a saidinha do Dia das Mães, alguns dias antes.
O homem arrasta a moça para a beira do rio Sorocaba, agride e estupra a estudante cruelmente.
Quando ela desmaia, o homem joga a moça no rio.
Mais tarde, a polícia encontra o corpo da estudante no rio. Morta.
O nome da moça era Rafaela de Campos, e tinha 19 anos.
Virou mais um número na longa lista de mulheres estupradas e mortas no país, sem direito à defesa.
Sem direito à nada.
A polícia, sobrecarregada, dá a atenção que pode ao caso e fim.
Nada de imprensa, nada de holofotes.
Corta.
As cenas acima mostram claramente o que é esse nosso Admirável Mundo Novo, que teria chocado até Aldous Huxley, um mundo onde solidariedade, humanidade e compaixão só existem medidos em curtidas, em visualizações, ou seja lá qual for a moeda das redes sociais.
Pesos e medidas, vidas que tem valor apenas em número de admiradores e seguidores. E vidas que não valem quase nada.
Só um número de uma triste estatística, esquecido no dia seguinte.
Ninguém poderia prever no que nos tornaríamos, quando tudo isto começou.
Que o amor seria substituído por likes.
E que afinal esse Admirável Mundo Novo não passa, na realidade -com toda essa tecnologia que poderia ser uma benção- num mundo lamentável e frio.
Um mundo onde quem determina quem é gente ou não é um like.
Ou milhares deles, para um jogador de futebol ou seja quem for.
Um mundo triste.
Marco Angeli Full
https://www.marcoangeli.com.br
Artista plástico, publicitário e diretor de criação.