Não é de hoje que ficção e realidade se misturam neste país. Existem muitos exemplos na história do Brasil de mitos encobrindo verdades e de fatos verídicos distorcidos e inventados. Basta ver os livros didáticos onde todos nós aprendemos um pouco da nossa história e, geralmente, de modo superficial e com interpretações enviesadas que induzem ao equívoco.
Por exemplo: existe o mito de que na história do Brasil não houve grande derramamento de sangue e jamais tivemos um passado que nos envergonhasse. Tivemos a escravidão, mas a sua abolição foi feita pelas mãos de uma princesa como num conto de fadas, ao contrário de muitos outros países que também tiveram trabalho escravo e sofreram guerras para acabar com isso. Vejam o caso dos grandes conflitos armados: pelos livros do ensino fundamental parece que nunca sofremos uma grande guerra. Afinal, a única que aconteceu foi a “do Paraguai” e não do Brasil. Conforme ingênuas ou propositais interpretações, apenas nos envolvemos por que os paraguaios, liderados por um tirano, invadiram territórios nossos. É claro que é uma visão distorcida e equivocada e que precisa ser revista. Isso sem contar com alguns atropelos que tivemos no período colonial, imperial e republicano de revoltas e revoluções que, “acidentalmente”, acabaram com algumas vítimas e que as vítimas se tornaram heróis nacionais. A história brasileira incorporou dessa forma o mito de que nossos conflitos sociais sempre foram mansos, pacíficos e de fácil solução.
Os exemplos são inúmeros e, no final das contas, acaba-se por acreditar que em nossa história só tem mocinhos. Os bandidos da história são sempre vencidos. E, se por ventura, mocinhos e bandidos se enfrentaram, cada qual teve o seu lado bem definido, o do bem e o do mal.
A realidade, porém, é muito mais interessante e mais complexa que as versões fantasiosas e, todos os dias salta diante de nossos olhos, pelas ruas ou pelas mídias e redes sociais. Refiro-me à “guerra civil” diária que vivemos com a mortandade de criminosos, policiais e, tragicamente, de uma população civil. É assustadora a morte de crianças que estavam em lugar errado e em hora errado, sem contar com a violência dos mais diversos tipos de abusos de menores. Não se pode deixar de salientar a triste promiscuidade nos morros cariocas ou das periferias das grandes cidades, da população local convivendo e orbitando em torno de bandidos e traficantes. Nestes casos, é triste observar que sempre ocorre uma reação desses moradores em defesa dos bandidos e contra a ação policial. Assim, algumas vezes assistimos estarrecidos a grandes funerais de traficantes e assassinos como se fossem celebridades, tudo junto e misturado.
Lembro-me dos acontecimentos que ocorreram no Rio de Janeiro, numa operação policial e militar nunca vista antes neste país (!). E, como nos acostumamos a acreditar que aqui no Brasil não há violência explícita e guerras civis, foi impactante ver ao vivo e a cores as cenas impressionantes de cerco às “comunidades” (o novo nome para favelas) combatendo contraventores do tráfico de armas e de entorpecentes em imagens que correram o mundo.
Passado o primeiro choque de notícias, a população do Rio, acompanhada pelas demais de todo o país, passaram a se manifestar em apoio ao BOPE, o famoso e cinematográfico Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Houve também, na época, uma incrível coincidência (será?) misturando a realidade e a ficção: a sequência de um filme sobre a polícia carioca repetindo o tremendo sucesso de bilheteria do primeiro, o Tropa de Elite II. E, induzido pelo aprendizado na escola que nos leva a crer que o Brasil continua a ser manso e pacífico, além de grande parte da imprensa nacional alardear cada gesto e cada barulho ocorridos nos morros do Rio, passamos a torcer pelos mocinhos (do BOPE) contra a turma do mal: os traficantes que, além de malvados, ainda viviam em mansões como marajás no meio da pobreza reinante nas favelas. Um desaforo! Tudo já é passado e ainda hoje continua a guerra nos morros cariocas, não diferente do resto do país.
Contudo, as coisas não são bem assim, nem nunca foram. Temos uma sociedade, diga-se de passagem, muito bem representada pelo que está acontecendo no Rio de Janeiro: complexa, multicultural, violenta, descrente dos poderes públicos e, pior de tudo, com medo. O medo é sempre péssimo conselheiro e o pior companheiro em horas difíceis, induzindo atitudes impensadas e desesperadas. Além disso, o medo dá origem ao ódio.
Com todo o barulho da imprensa, este é o momento de pensar um pouco e procurar entender o que está acontecendo em nosso país, para não fecharmos mais os olhos e não aceitarmos mais a omissão dos governantes e dos políticos que nós mesmos elegemos. Hoje é bem sabida como ocorre a conivência com a contravenção e a impunidade daqueles que não estão nos morros cariocas ou nos bairros pobres, mas são tão bandidos (ou pior) quanto os pés de chinelo que ostentam fuzis diante de câmeras de TV e vendem trouxinhas e pedrinhas por todas as cidades do país.
A bem da verdade, toda essa violência tem sua raiz no passado, distante ou longínquo. Nossa história está repleta de sangue e de brutalidade e precisa ser conhecida de forma mais responsável. A ideologização que contamina os livros didáticos e a forma de ensinar a história nas escolas impede que se forme uma consciência real do que somos como cidadãos. Essas distorções que se produzem nas escolas e no senso comum foram produzidas em época diversas, dependendo dos interesses de quem esteve no poder e nos impingiu uma história de faz de conta. Os heróis (e os vilões) dos livros didáticos mudam de lugar conforme a época.
O conhecimento da história tem por objetivo principal a compreensão do que somos e só assim podemos explicar o que acontece conosco. Os mitos e as versões “oficiais” são feitos para confundir e manipular. A leitura de bons livros, o diálogo e a reflexão são as únicas ferramentas de que dispomos para mudar isso tudo e construir no futuro uma sociedade mais justa e menos violenta.
Valmir Batista Corrêa
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Valmir Batista Corrêa
É professor titular aposentado de História do Brasil da UFMS, com mestrado e doutorado pela USP. Pesquisador de História Regional, tem uma vasta produção historiográfica. É sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de MT, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de MS e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.