Educar para empreender versus educar para “lacrar”
27/04/2019 às 06:39 Ler na área do assinanteNesse mês tivemos notícias auspiciosas para a educação e para a pesquisa no Brasil: alunos da UFPR chegaram às finais de uma competição de empreendedorismo promovida pela Universidade de Harvard. As áreas de destaque na competição foram indústria da moda, construção civil, engenharia elétrica e engenharia de produção. Também ganhou destaque na mídia a teoria biológica denominada “teoria da preparação para o estresse oxidativo” (POS), a qual explica como alguns animais conseguem passar por situações extremas (privados de oxigênio) e depois voltar a uma vida normal.
Quanto à competição realizada em Harvard, foram centenas de projetos inscritos, todos com foco no empreendedorismo, isto é, em descobrir maneiras de causar um “impacto positivo” na realidade brasileira. Impacto positivo, aqui, significa a promoção da prosperidade em suas diversas formas (o que inclui, obviamente, a segunda notícia citada acima). Afinal, essa deveria ser uma das funções da universidade, não é mesmo?
Não obstante, embora estejam no DNA da universidade o 1. Fomento à busca pela verdade, a 2. Solidificação dos pilares morais do mundo civilizado, bem como a 3. Promoção da prosperidade (mediante o empreendedorismo, por exemplo), esses não têm sido objetivos almejados em todas as áreas que constituem nossas vilipendiadas universidades.
Não apenas isso, mesmo nossos gestores frequentemente contribuem para o seu abjeto vilipêndio, rejeitando degradantemente os três propósitos acima, algo evidenciado publicamente, por exemplo, pelo reitor da universidade em que leciono ao afirmar orgulhosamente, nas redes sociais, que:
“A UFPEL não é para uma elite intelectual”.
Que isso quer dizer? Entre outras coisas, penso que a mensagem é clara: Capacidade intelectual e empreendedora não é um critério relevante para o ingresso (e, mesmo, permanência) em nossa universidade. Eu diria que tal visão não está, infelizmente, restrita à gestão da UFPEL, mas que se trata de uma visão presente na gestão universitária de uma maneira abrangente. Sob as ideias de “inclusão” e “diversidade” nossas universidades têm abandonado seus propósitos fundamentais (avanço do conhecimento, da prosperidade material e moral, etc), os quais, aliás, remontam ao seu surgimento.
Mas uma das causas desse vilipêndio talvez esteja na aversão ao empreendedorismo e, mesmo, à eficiência (bem como aos valores morais que estabeleceram nossos pilares civilizacionais). Considerando-se que a degeneração de nossas universidades começou surpreendentemente pelas ‘humanidades’, a partir delas tivemos a metástase de uma mentalidade antiliberal e antiocidental que se espraiou inclusive para seus setores administrativos (representando hoje também uma ameaça para outras áreas até então preservadas dessa mentalidade).
Assim, avançou em nossas universidades uma visão que toma a preocupação com o empreendedorismo e com a eficiência como uma “lógica da fábrica”, ou, como dizem frequentemente, uma “lógica de mercado”.
Ora, a por eles abominada “lógica de mercado” implica em uma preocupação com resultados, com o “impacto positivo” dos estudos realizados em nossas universidades. Noutros termos, a “lógica de mercado” envolve o empreendedorismo e as implicações concretas do desenvolvimento de certas pesquisas, especialmente no avanço do conhecimento e da prosperidade, fomentando derradeiramente um estado de mais conforto material e “espiritual”. Não apenas isso, uma “lógica de mercado” não é refém de uma elite, de uma mentalidade centralizadora, de um grupo de ungidos: ela envolve escolhas individuais em uma resposta social baseada justamente nas vontades individuais. Portanto, pesquisas como as referidas no início desse artigo passam no “teste da lógica de mercado”: percebe-se que são investimentos com impacto social positivo (promovem a prosperidade de diversas formas). São pesquisas honestas intelectualmente, baseadas em razões e cujos resultados não apenas têm um impacto positivo presente, mas serão perenes. Em suma, não são apenas entretenimento individual.
Todavia, o ponto é que ao se rejeitar o empreendedorismo se está rejeitando, também, qualquer critério externo à área. Nesse caso, temos uma “elite” que simplesmente estabelece, arrogantemente, quais são os seus critérios, frequentemente de forma independente da realidade (e das vontades individuais). Pergunte a muitos “pesquisadores” nas ‘humanidades’, por exemplo, pela relevância de sua pesquisa. Muito provavelmente a resposta será algo como: “Nós” – os ungidos – “sabemos da relevância de nossa pesquisa. Não precisamos prestar contas à sociedade” (mesmo que tais pesquisas sejam realizadas com o dinheiro dos pagadores de impostos). Eventualmente dirão algo como “nossas pesquisas seguem padrões distintos das outras áreas” (padrões incompreensíveis para os ‘não iniciados’). Em suma, se eximirão de uma avaliação que não seja a de seus próprios pares.
Com efeito, em geral suas pesquisas são (além de autorreferentes) apenas indiferentes, isto é, são lidas por um reduzidíssimo grupo de camaradas, os quais vão bajular o texto e defendê-lo contra a indignação daqueles que, dotados de um mínimo de bom senso, perceberão que se trata de uma mera tolice nascida para o esquecimento e motivada pela satisfação do próprio ego.
Infelizmente vige em nossas universidades um corporativismo que possui uma espécie de ‘direito natural’ à imunidade, o qual está expresso em algumas “leis”. Dentre elas encontramos a ‘lei da autonomia universitária’ e a ‘lei da liberdade de cátedra’. Tais “leis” (eu as chamo assim, dada sua força coercitiva) são sempre evocadas quando encontramos “pesquisas” como as que citei aqui:
Essas “leis” são o refúgio derradeiro daqueles que pretendem defender ideias torpes e, mesmo, nocivas ao progresso em suas mais diversas expressões (e áreas do conhecimento). Em suma, elas são “trunfos” quando não há como justificar certas pesquisas.
Mas o que temos, aqui, é uma distinção entre uma educação para empreender e uma educação para “lacrar”, ou seja, entre duas visões: 1. Uma visão empreendedora que se preocupa com o impacto social positivo na realidade (ainda que no longo prazo) e 2. Uma visão que se preocupa exclusivamente com a diversão (muitas vezes doentia) pessoal.
Exemplos paradigmáticos do que estou falando abundam nos repositórios de dissertações e teses. Nesses repositórios acessamos muitas “produções” acadêmicas (frequentemente subsidiadas com recursos públicos) que evidenciam o que quero dizer. Eis mais alguns exemplos da barbárie vigente em nossas universidades:
1. “A folia dos cus prolapsados: pornografia bizarra e prazeres sexuais entre mulheres”
2. “Feminilidades, masculinidades e glamour: Uma etnografia da rede de concursos de beleza gay cearenses”
3. “O diabo em forma de gente: (R)existências de gays afeminados, viados e bichas pretas na educação”
4. “Negras raízes questionam a ciência ocidental”
5. “Orgias entre homens: territórios de intensidade e socialidade masculina”
6. "Personagens emolduradas: os discursos de gênero e sexualidade no Big Brother Brasil 10"
7. “Lugar de branca(o) e a/o ‘branca(o) fora do lugar: Representações sobre a branquitude e suas possibilidades de antirracismo entre negra/os e branca/os no movimento negro em Salvador/BA”
8. “A produção das masculinidades e socio-espacialidades de homens que buscam parceiros do mesmo sexo no aplicativo Tinder em Rio Grande, RS”
9. “Prazeres sexuais anais e a produção do olhar pornô em vídeos pornográficos”
10. “A estética Funk Carioca: criação e conectividade em Mr. Catra”
11. “Erótica dos signos nos aplicativos de pegação: processos multissemióticos em performances íntimo-espetaculares de si”
12. “Agora eu fiquei doce: o discurso da autoestima no sertanejo universitário”
13. “Experimenta-te a ti mesmo: Felipe Neto em performance no YouTube”
Quase todos esses exemplos são de dissertações e teses realizadas em universidades públicas, nos últimos anos, com bolsas mensais (R$ 1.500,00 a de mestrado e R$ 2.200,00 a de doutorado) providas por agências governamentais (portanto, subsidiadas com nossos impostos).
Se considerarmos que, além das eventuais bolsas, um estudante em uma universidade pública custa em torno de R$ 41.500 ao ano (em torno de R$ 3.500,00 por mês), devemos, sim, perguntar pelo impacto positivo dessas pesquisas e pelas atividades que são realizadas no interior de nossas universidades. Temos o direito de demandar uma justificativa atinente ao impacto positivo dessas “pesquisas” em nossa realidade. Em que medida elas fomentam a busca pela verdade? Como elas contribuem para a solidificação dos pilares morais que estabeleceram e protegem o mundo civilizado? De que maneira elas promovem a prosperidade?
Essas são apenas algumas das questões que deveriam ser colocadas diante dos exemplos acima, os quais, aliás, estão longe de serem incomuns (especialmente nas ‘humanidades’).
Mas, tendo em vista o que lemos nos resumos dessas dissertações e teses, podemos antecipar uma resposta para as perguntas acima. O tipo de “pesquisa” que elas representam é justamente uma tentativa de perverter todos os meios de prosperidade individual e social, desde os valores morais até mesmo a ciência (que algumas dessas pesquisas rejeitam por representar uma ciência ‘masculina’, ‘branca’, etc, como se a lei da gravitação universal estivesse imersa em algum preconceito e devesse ser revogada por ter sido postulada por um homem branco europeu - Newton).
Mas acredito que a questão que se coloca para nosso sistema educacional nesse momento é a seguinte: Como frear e fazer retroceder a metástase de uma mentalidade antiliberal e antiocidental que hoje está enraizada em nossas universidades? Ora, parece-me que é o caso de uma ressecção do tumor que se espraiou pelas universidades. E, uma vez que a fonte do tumor se encontra em nossas ‘humanidades’, talvez ali encontremos o órgão adoecido, alvo da ressecção. Afinal, é desde elas que a metástase tem se espraiado.
Gostaria de finalizar com mais um exemplo. Enquanto líamos as notícias referidas no início desse artigo, estava ocorrendo, aqui na UFPEL, a aula inaugural da Faculdade de Educação intitulada “Na luta é que a gente se encontra: educação, gênero, racismo e ideologia", a qual faz parte de uma temática sugerida, aliás, pelo Fórum Nacional de Diretores de Faculdades e Centros de Educação ou equivalentes das Universidades públicas brasileiras (FORUNDIR).
Ou seja, se trata de mais uma palestra cujo propósito é integrar, em um discurso proselitista, diversos estandartes da mentalidade antiliberal e antiocidental, especialmente as já cansativas ideias de “luta” e “resistência”, em uma insistência no discurso “eles contra nós”. Agora, vejam: estamos nos referindo a uma faculdade de educação, a qual vai (de)formar as futuras gerações de professores e professoras, responsáveis pelas crianças que constituirão os recursos humanos dos quais dependeremos, enquanto sociedade, no futuro. Que esperar, então, de uma educação que rejeita o empreendedorismo em prol da “lacração” e da “resistência”? Ora, ou fomentamos uma educação para empreender ou nos aprofundaremos no obscurantismo que hoje vige em nosso sistema educacional.
(Texto de Carlos Adriano Ferraz. Graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com estágio doutoral na State University of New York (SUNY). Foi Professor Visitante na Universidade Harvard (2010). Atualmente é professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) na graduação e no Programa de Pós-Graduação em Filosofia, no qual orienta dissertações e teses com foco em ética, filosofia política e filosofia do direito)