Uma das coisas mais importantes na vida de uma pessoa é a sua memória da infância. O que aprendemos, sentimos, brincamos e vivemos quando crianças marcam toda a nossa existência, até a velhice.
Quando fui criança brinquei muito, aprendi muito e vivi uma fase maravilhosa mergulhado num mundo de fantasia e deslumbramento com os livros infantis. Dou graças a Deus por ter lido bons livros. Não o bastante, mas o suficiente para formar em minha mente um universo de vida, de valores e princípios que me seguem até hoje.
Os livros sempre foram muito caros em nosso país. Minha esposa também viveu esses momentos de leitura prazerosa e seus pais tinham uma estante de livros em casa que não eram enfeites. Em sua casa, de família remediada como se dizia antigamente, havia uma coleção completa de literatura infantil de Monteiro Lobato.
Uma preciosidade que havia sido de sua mãe e toda lida por ela em sua infância lá pelos anos de 1930, quando minha sogra era menina. Monteiro Lobato publicou seus livros infantis exatamente nessa época, especialmente Caçadas de Pedrinho em 1933.
Esses livros chegaram até minha mulher já amarelados e sebosos de tanto que foram lidos. E ela cuidou de torná-los ainda mais escuros e judiados de tanto manuseio. Passava longos momentos encantada (em da verdade, hipnotizada) com as Reinações de Narizinho e com as Histórias de Tia Anastácia, como se fossem parte de sua própria existência num plano literalmente extra-terrestre: ela viajava naquelas páginas amarelecidas toda a vez que as relia (o que fez inúmeras vezes). Quando alguém perguntava por ela, minha sogra respondia: minha filha está no mundo da Lua com o visconde de Sabugosa.
Quando nasceram meus filhos, além dos brinquedos e apetrechos de criancinhas que a gente passou a acumular em casa, tomei a providência de me apossar da coleção de Monteiro Lobato de minha sogra, sem consultar meus cunhados. Creio que se o fizesse, eles teriam me impedido. E logo que meus meninos cresceram e tiveram algum discernimento para compreender o “mundo da Lua”, minha mulher passou a ler Monteiro Lobato para eles antes mesmo que eles soubessem ler. E olha que foi uma boa desculpa para ela ler tudo de novo com o maior prazer. Eu a ouvia, de longe, também fascinado.
Como eu tenho dois meninos, nossa escolha para a primeira leitura recaiu sobre Caçadas de Pedrinho.
Provavelmente, hoje eu seria advertido, no mínimo, por termos feito uma escolha politicamente incorreta, discriminando o gênero: porque não começamos pelas reinações da menina do Lobato? Porque essa opção machista pelo Pedrinho? Ou poderia, ainda, sermos condenados pelos ambientalistas por estimular a caça de onças pintadas, justo estas que estão em risco de extinção. E o nome do sítio, então? Não seria pornográfico escolher justamente o tal passarinho com esse nome feio? Além do mais, o consagrado autor foi criticado por comparar a tia Anastácia com “furrundum de onça“. Creio, no entanto, que qualquer opção pelas histórias de Lobato é sempre boa em qualquer contexto e circunstância. Meus filhos cresceram ouvindo e depois lendo por conta própria os livros fantásticos, aprendendo com suas “andanças imaginárias” pelo Sítio do Pica-pau Amarelo. E, sobretudo, aprenderam a gostar de boa literatura.
Por tudo isso, lamentei profundamente alguns anos atrás uma decisão do (felizmente depois corrigida esta idiotice) Conselho Nacional de Educação que emitiu um parecer não recomendando a distribuição do livro Caçadas de Pedrinho de M. Lobato nas escolas públicas, pelo seu “teor racista”. Infelizmente muitas bobagens são praticadas em nome da questão de gênero, por exemplo. Espero também não ser acusado de politicamente incorreto.
Na verdade, fiquei perplexo ao ler na Folha de São Paulo a notícia dizendo que o CNE se preocupou com o teor racista atribuído ao tratamento da personagem de tia Anastácia,
logo uma figura das mais interessantes e amadas do sítio. Fazer o quê, num país que tem um Ministério da Igualdade Racial e que tem educadores conselheiros de alto nível (?) que apoiam essa proposta estapafúrdia e fascista. Digo sim, f-a-s-c-i-s-t-a com todas as letras, por que a censura aos livros é um ato puramente arbitrário e fascista.
É preciso muito cuidado com ações e atitudes ditas “politicamente corretas” para não criar uma nova forma de discriminação e, pior ainda, sepultar nosso passado histórico e vida cultural rica, multirracial, multicultural e inteligente, não permitindo às nossas crianças que aprendam a conviver e a respeitar os direitos dos outros e seus pensamentos diversos e diferentes. Essa “onda” de promoção aparente de direitos e de respeito aos excluídos é, na maioria das vezes, equivocada ou muito mal interpretada por gente inescrupulosa, ou com interesses espúrios, ou por ignorância mesmo.
As nossas crianças e jovens devem ser educados para a tolerância e para a solidariedade entre os homens, almejando um mundo melhor. Isso se faz com conhecimento e compreensão do mundo humano, seu passado e a construção de valores e princípios humanistas universais, com todas as suas imperfeições e maravilhas.
O livro é uma excelente ferramenta para isso.
Valmir Batista Corrêa
Valmir Batista Corrêa
É professor titular aposentado de História do Brasil da UFMS, com mestrado e doutorado pela USP. Pesquisador de História Regional, tem uma vasta produção historiográfica. É sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de MT, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de MS e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.