A Ponte Hercílio Luz no Brasil (SC) em debate... E a Golden Gate, nos Estados Unidos

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Voltou, forte, o debate sobre a ponte Hercílio Luz na imprensa, com CPI já instalada na Assembleia Legislativa de Santa Catarina para averiguar o histórico de seu fechamento ao público, contratos de reforma e os custos envolvido.

Estimativas já falam em algo como R$ 1,0 bilhão (259 milhões de dólares americanos), podendo crescer. Isto corresponde a cerca de 22% do custo total da construção da ponte Golden Gate, em valores atualizados. É muito dinheiro e é certo que se investiguem os itens de despesas desta aparente grande festa, custeada pelos contribuintes.

Sem querer suscetibilizar quem quer que seja, não posso calar ante o que penso sobre a questão.

Começo notando que a ponte Golden Gate, ligando a cidade de São Francisco a Sausalito, na Califórnia, Estados Unidos, tem hoje 82 anos de operação, sem qualquer interdição. Nem sequer se pensa em interdição, ou jamais se pensou em tal coisa. Já a nossa ponte Hercílio Luz sofreu sua primeira interdição ainda jovem - tinha apenas 56 anos - em 1982.

Qual a principal razão para tanta diferença de vida útil entre Golden Gate e Hercílio Luz?

Pode-se alegar que a Golden Gate, embora concluída apenas 11 anos após a Hercílio Luz, tenha incorporada uma tecnologia bem superior. Em parte isto pode ter um fundo de verdade, mas não está nem perto de ser toda a verdade. Creio também em outros fatores determinantes que levaram à interdição da nossa ponte, entre os quais a velha cultura da irresponsabilidade e incompetência de nossos governos - e da constelação de cortesões medíocres que tradicionalmente os cercam- que abandonaram, por décadas, a bela obra às intempéries, sem qualquer sistema de manutenção contínua e permanente. Falo isto sem medo de errar, pois falo como observador visual e crítico desde que me entendo como pessoa.

Já a ponte Golden Gate ganhou uma equipe de manutenção permanente no dia em que foi inaugurada. Até documentário já assisti sobre isso. A ponte é percorrida diariamente, desde maio de 1937, quando foi inaugurada, por uma equipe de operários treinados que tentam localizar e marcar todo e qualquer sinal de deterioração. Outra equipe chega mais tarde, vê e reconhece o sinal e faz as correções devidas. Com isto pode-se dizer que a Golden Gate ainda terá muitos 82 anos de vida à frente. Já a abandonada ponte Hercílio Luz, coitada...

Cada ponte tem a duração que seu país merece?

Quando da primeira interdição da ponte Hercílio Luz, percebi um frisson na UFSC e, em particular, no Departamento de Engenharia Mecânica. Eu, embora doutorado em dinâmica estrutural, tendo tido como orientador um professor (Denys Mead) que ensinou fadiga estrutural sônica aos americanos, fui, digamos assim, ostensivamente ignorado. De todos os lados apareceram ‘especialistas’ que, formados em comissões de salvação da ponte, falavam sobre o que fazer e o que não fazer. Eu apenas recebia os respingos das supostamente elevadas discussões.

Incomodado com a indiferença (até nessas horas a política de grupos e confrarias emergem) não acompanhei de perto o que se fazia, ou se deixava de fazer. Também não sou de comparecer a banquete sem ser devidamente convidado. Ouvi dizer (assim mesmo, ouvi dizer) que um (ou mais de um, sei lá) olhal da catenária da ponte apresentava uma trinca e que isto foi a principal razão para a interdição. Trinca em estruturas é assunto para a disciplina Mecânica das Fraturas (ver Anderson, T. L., 2005).

Não sei se aqueles ‘especialistas’ levantaram a história temporal da(s) trinca(s) ao longo dos anos. Falo isto porque pode ser que a trinca lá sempre estivera, estática, que aparecera no processo de fabricação do olhal, combinado com as características do aço (excesso de carbono, etc.), tratamento térmico, entre outras causas. Pode ser, entretanto, que tenha surgido em consequência do carregamento dinâmico (carga flutuante ao longo do tempo) sobreposto ao carregamento estático. Neste caso, o levantamento da história temporal da trinca é fundamental para toda e qualquer decisão (o carregamento estático foi o único levado em consideração no cálculo estrutural da ponte - tenho uma cópia do memorial de cálculo da estrutura). A história temporal da trinca é de vital importância para se calcular a velocidade de propagação da mesma, ao longo do tempo, e se avaliar quando ocorrerá a velocidade catastrófica. Ou seja, esta análise, que desconfio nunca foi feita - se foi alguma vez aventada - permitiria a avaliação da vida remanescente da estrutura.

Mais ainda: se se observar que a trinca lá sempre esteve, estática, por cinquenta e seis anos, sem sinais de progressão (suponho que este seja o caso), por que se preocupar com ela? Se foi isto o que realmente aconteceu, não há dinâmica estrutural que preveja, com probabilidade maior do que zero, que a ponte estivesse em risco de desabamento (ver Augusti, G. et alii, 1984).

Se a constatação (se houve tal constatação, o que não acredito) foi de que houve progressão das trincas ao longo do tempo, estudos mais completos teriam sido necessários, como se explicou acima, inclusive estudos laboratoriais.

Mas é preciso deixar claro que a simples constatação de trinca não é, necessariamente, motivo para interdição da estrutura, ou busca de soluções exóticas caríssimas (‘safe proofing’, etc.). Trincas são um caso comum em estruturas de alta eficiência, como as estruturas aeronáuticas e, nem por isso, se interdita, necessariamente, o avião ou se reforma o avião.

Existem técnicas de estancamento da propagação das trincas (redução da concentração de tensão na ponta da trinca, por exemplo), enquanto a questão é remetida a especialistas e laboratórios para decisões mais precisas. Enquanto isso a aeronave ou outra estrutura dinâmica pode continuar em operação, sem riscos adicionais de colapso, desde que a área remanescente da secção estrutural se mostre capaz de manter a estrutura em operação por algum tempo. Um simples cálculo pode demonstrar isso.

O que se quer dizer, com a argumentação acima, é que soluções simples e baratas podem ser aplicáveis, desde que o problema tenha sido estudado com a profundidade técnica desejável, antes de se partir para uma solução radical de reforma, ou ‘safe proofing’, estas sempre bem mais caras.

Claro que, pelo fato de eu ter ficado à margem do que se fazia (se algo relevante se fez) na UFSC, o meu texto acima está contaminado de incertezas, além daquelas (incertezas probabilísticas) que o problema de engenharia da Ponte Hercílio Luz necessariamente contém e com as quais uma equipe competente deveria ter se envolvido, se alguma equipe competente se envolveu. Mas, mesmo assim, pelo que ouvi e pelo que imagino do problema em si, não aceitei passivamente (isto é, sem estudos realmente pertinentes) a proposta de demolição da ponte. Como não aceito como única, ou melhor, a ideia de reforma estrutural da ponte, como parece ter sido a adotada.

Agora, para finalizar: o ‘affair’ da ponte Hercílio Luz me lembra o do pároco que, tendo de fazer uma reforma da sua igreja, jamais permite que ela (a reforma) chegue ao fim. Porque a conclusão da reforma significa o fim das doações para a mesma. No caso da ponte, as doações viram verbas gigantescas e renda extra para comissões de ‘especialistas’, não raro com conexões políticas importantes. Isto pode explicar a longa interdição da ponte Hercílio Luz, já durando cerca de 37 anos. Enquanto isto, a ponte Golden Gate permaneceu (e permanece) operante e firme e a nos impor a pergunta: que País é este que chamamos Brasil?

REFERÊNCIAS:

1. Anderson, T. L., Fracture Mechanics, terceira edição, publicado por Taylor & Francis, 2005

2. Augusti et alii, Probabilistic Methods in Structural Engineering, publicado por Chapmann and Hall, 1984.

Foto de José J. de Espíndola

José J. de Espíndola

Engenheiro Mecânico pela UFRGS. Mestre em Ciências em Engenharia pela PUC-Rio. Doutor (Ph.D.) pelo Institute of Sound and Vibration Research (ISVR) da Universidade de Southampton, Inglaterra. Doutor Honoris Causa da UFPR. Membro Emérito do Comitê de Dinâmica da ABCM. Detentor do Prêmio Engenharia Mecânica Brasileira da ABCM. Detentor da Medalha de Reconhecimento da UFSC por Ação Pioneira na Construção da Pós-graduação. Detentor da Medalha João David Ferreira Lima, concedida pela Câmara Municipal de Florianópolis. Criador da área de Vibrações e Acústica do Programa de Pós-Graduação em engenharia Mecânica. Idealizador e criador do LVA, Laboratório de Vibrações e Acústica da UFSC. Professor Titular da UFSC, Departamento de Engenharia Mecânica, aposentado.

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