O descaso das empresas aéreas e a relação de impunidade com o Poder Judiciário
31/03/2019 às 06:14 Ler na área do assinanteNão é novidade que as companhias aéreas em operação no Brasil estão deitando, rolando e sambando na cara dos passageiros. Descaso, falta de transparência, tarifas extorsivas, publicidade enganosa, truques em programas de milhagens e alterações unilaterais dos horários de voos são apenas algumas das violações à Lei praticadas diuturnamente contra os Consumidores Brasileiros.
Entretanto, a pergunta correta é: por que isso acontece diária e sistematicamente e nada acontece às companhias? A resposta é quase clichê: nossas aéreas gozam da mais plena e doce IMPUNIDADE garantida pelo Poder Judiciário.
Passo a um exemplo real...
Virou modinha no Tribunal de Justiça de Mato Grosso - TJMT a nauseabunda interpretação de que consumidores lesados pela má prestação de serviços são chorões sem causa, vítimas de mero aborrecimento.
Como é fácil para um juiz togado chamar a desgraça de alguém de "mero aborrecimento", né?!
Analisando um julgado recente da Segunda Câmara de Direito Privado do TJ/MT, nota-se, com clareza meridiana, o tamanho da encrenca em que nos metemos por sermos consumidores num país aonde toga e impunidade são sinônimos.
Em longínquo 2016, a empresa "X" alterou unilateralmente o horário do voo de retorno a Cuiabá de uma passageira alegando "mudança na malha aérea". Ela havia comprado passagem para o voo das 16h40 e a companhia aérea mudou seu horário para 09h10.
É óbvio que essa antecipação em quase oito horas interferiu nos planos e na programação da consumidora, que buscou o Poder Judiciário de Mato Grosso para requerer seus direitos, entre eles a reparação pelas perdas materiais envolvidas na mudança e a indenização por Danos Morais. Tudo comprovado à inicial do processo.
Só agora, em 2019, a junta de desembargadores do TJ/MT proferiu a seguinte decisão: "A jurisprudência é pacífica sobre a inexistência dos danos morais quando existe a prévia notificação do consumidor sobre as alterações do voo, demonstrando a precaução apta a evitar a ocorrência de atos ilícitos, [...] sendo que a situação reclamada nos autos não passa de MERO DISSABOR".
A tal "jurisprudência" foi a citação de um acórdão de 2017 proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia, onde se lê: "A empresa aérea agiu para mitigar, dentro do possível, os transtornos normalmente experimentados nessas situações. [...] Descabe indenização extrapatrimonial, vez que a autora não foi submetida a constrangimento que atentasse contra sua imagem ou honra pessoal".
Isso é uma barbaridade inominável. Eu queria ver um desses desembargadores de Rondônia ou de Mato Grosso vivendo uma situação dessas, de "transtornos normais" e "mero dissabor", tendo um voo alterado em oito horas e impedindo-os de comparecer ao Plenário de suas Cortes para algum julgamento midiático importante.
Abro parêntese: recentemente, o ministro Marco Aurélio Mello exibiu sua passagem aérea em reunião do Pleno do Supremo Tribunal Federal para dizer que não poderia continuar o julgamento porque seu voo havia sido antecipado. Disse e partiu, porque ele pode. Fecho parêntese.
Então, já que Suas Excelências são tão implacáveis ao julgar como "aborrecimento" a desgraça alheia, prefiro eu a inexorabilidade do PODER DA LEI. A saber:
A Resolução nº 400 da ANAC - Agência Nacional de Aviação Civil - é objetiva ao estabelecer, em seu Art. 12, § 1º, inciso II, quais são os DEVERES das companhias aéreas nesses casos, ipsis litteris:
"Art. 12 - As alterações realizadas de forma programada pelo transportador, em especial quanto ao horário e itinerário originalmente contratados, deverão ser informadas aos passageiros com antecedência mínima de 72 (setenta e duas) horas.
§ 1º - O transportador deverá oferecer as alternativas de reacomodação e reembolso integral, devendo a escolha ser do passageiro, nos casos de:
[...]
II - alteração do horário de partida ou de chegada ser superior a 30 (trinta) minutos nos voos domésticos e a 1 (uma) hora nos voos internacionais em relação ao horário originalmente contratado, se o passageiro não concordar com o horário após a alteração."
Mais adiante, a íntegra do Art. 28 da supramencionada Resolução da ANAC é esclarecedora quanto à reacomodação de passageiros em outros voos (inclusive de outras empresas, se necessário e se for a escolha do passageiro) em caso de alteração unilateral de horários por parte da companhia aérea. Vejamos:
"Art. 28 - A reacomodação será gratuita, não se sobreporá aos contratos de transporte já firmados e terá precedência em relação à celebração de novos contratos de transporte, devendo ser feita, à escolha do passageiro, nos seguintes termos:
I - em voo próprio ou de terceiro para o mesmo destino, na primeira oportunidade; ou
II - em voo próprio do transportador a ser realizado em data e horário de conveniência do passageiro.
Parágrafo único. Os PNAEs, nos termos da Resolução nº 280, de 2013, terão prioridade na reacomodação."
E isso é o básico do básico, viu pessoal?! Porque em sede de danos morais causados à passageira mato-grossense, caberia até a aplicação da Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor: "O desvio produtivo caracteriza-se quando o consumidor, diante de uma situação de mau atendimento, precisa desperdiçar o seu tempo e desviar as suas competências de uma atividade necessária ou por ele preferida para tentar resolver um problema criado pelo fornecedor, a um custo de oportunidade indesejado, de natureza irrecuperável." (Marcos Dessaune, in: "Teoria Aprofundada do Desvio Produtivo do Consumidor", 2017)
Mas, para nossos ilustres Magistrados, tudo não passa de aborrecimento, "mero dissabor". Fazem valer a regra do malandro, segundo a qual todo brasileiro procura a Justiça em busca de enriquecimento ilícito em alegações de danos morais inexistentes.
Agora imagine: alguém pretende "enriquecer ilicitamente" com R$ 2.000,00 de indenização num processo que demora mais de três anos para ser julgado.
#ÉaLama!
Já diziam os poetas Toquinho e Vinicius de Moraes:
"Você que ouve e não fala / Você que olha e não vê / Eu vou lhe dar uma pala / Você vai ter que aprender / A tonga da mironga do kabuletê".
Vergonha do nosso Poder Judiciário resume.
Helder Caldeira
Escritor, Colunista Político, Palestrante e Conferencista
*Autor dos livros “Águas Turvas” e “A 1ª Presidenta”, entre outras obras.