O verbo – ou, palavra, como mais comumente conhecemos – enquanto substantivo expressa os significados do consciente do homem, seus pensamentos, sentimentos, afirmações, negações, enfim, todas as afetações reunidas num só ser construídas a partir da sua interação com as coisas do mundo e daquilo que, embora, incognoscível têm fundamento nas crenças e na fé.
Nas suas mais variadas formas de expressão – oral, gestual, escrita ou meramente simbiótico – a palavra é a arma e a armadura do homem em correspondência direta com outros homens e indireta com a natureza e tudo que nela há.
Essa correspondência também se traduz em ações humanas e a palavra se revela verbo, agir.
É através da palavra – que segue ao pensamento ou raciocínio – que conhecemos aos outros, as coisas e especialmente a nós próprios.
Sempre fui amante da leitura, sempre respeitei a palavra, ainda que ela estivesse a expressar algo com que não concordasse. Eis o seu valor. Como poderia discordar ou concordar com o pensamento alheio se não conhecesse pelo verbo a sua expressão? Como poderia sem ele expressar aos outros os meus pensamentos? Quem seríamos nós senão babilônios?
Estreio nessa coluna para confirmar o meu amor pela produção da palavra, não pelo domínio sobre ela nem pelo domínio da gramática. E o faço apresentando quem a dominava pela dádiva, pelo dom divino, que dela fez uso na sua existência legando-nos um acervo de construções da livre consciência.
Refiro-me a Pier Paolo Pasolini. Nascido em Bolonha aos cinco de março de 1922 e morto em Óstia a dois de novembro de 1975 – ambas as cidades de Itália – foi cineasta, poeta e escritor. Seus trabalhos demonstraram uma versatilidade cultural única e extraordinária, segundo a crítica especializada, embora o seu trabalho desde sempre tenha sido considerado polêmico e controverso, o que contribuiu para ter suas obras incluídas no rol das artes singulares da cultura italiana, segundo pensadores italianos contemporâneos. O crítico literário estadunidense Harold Bloom considera Pasolini o maior poeta europeu e a maior voz da poesia do século XX.
O poema que escolhi tem muito de uma realidade que se apresenta insistente a nós e já se tornou parte comum, parte despercebida da paisagem cotidiana, prova da insignificância atribuída a desiguais, cujos valores morais se amotinam em suas mentes ansiando a organização da justeza e aguardando o tempo para se nos apresentar.
Versos do testamento A solidão: é preciso ser muito forte para amar a solidão; é preciso ter pernas firmes e uma resistência fora do comum; não se deve arriscar pegar um resfriado, gripe ou dor de garganta; não se devem temer assaltantes ou assassinos; há que caminhar por toda a tarde ou talvez por toda a noite é preciso saber fazê-lo sem dar-se conta; sentar-se nem pensar; sobretudo no inverno, com o vento que sopra na grama molhada e grandes pedras em meio à sujeira úmida e lamacenta; não existe realmente nenhum conforto, sobre isso não há dúvida, exceto o de ter pela frente todo um dia e uma noite sem obrigações ou limites de qualquer espécie. O sexo é um pretexto. Sejam quais forem os encontros ? e mesmo no inverno, pelas ruas abandonadas ao vento, ao longo das fileiras de lixo junto aos edifícios distantes, que são muitos ? eles não passam de momentos da solidão; mais quente e vivo é o corpo gentil que exala sêmen e se vai, mais frio e mortal é o querido deserto ao redor; é isso o que enche de alegria, como um vento milagroso, não o sorriso inocente ou a prepotência turva de quem depois vai embora; ele traz consigo uma juventude enormemente jovem; e nisso é desumano, porque não deixa rastros, ou melhor, deixa um único rastro que é sempre o mesmo em todas as estações. Um jovem em seus primeiros amores não é senão a fecundidade do mundo. É o mundo que chega assim com ele; aparece e desaparece, como uma forma que muda. Restam intactas todas as coisas, e você poderia percorrer meia cidade, não voltaria a encontrá-lo; o ato está cumprido, sua repetição é um rito; pois a solidão é ainda maior se uma multidão inteira espera sua vez; cresce de fato o número dos desaparecimentos ? ir embora é fugir ? e o instante seguinte paira sobre o presente como um dever; um sacrifício a cumprir como um desejo de morte. Ao envelhecer, porém, o cansaço começa a se fazer sentir, sobretudo naquela hora imediatamente após o jantar, e para você nada mudou; então por um triz você não grita ou chora; e isso seria enorme se não fosse mesmo apenas cansaço, e talvez um pouco de fome. Enorme, porque significaria que o seu desejo de solidão já não poderia ser satisfeito; e então o que o aguarda, se isto que não se considera solidão é a verdadeira solidão, aquela que você não pode aceitar? Não há almoço ou jantar ou satisfação do mundo que valha uma caminhada sem fim pelas ruas pobres, onde é preciso ser desgraçado e forte, irmão dos cães. Pier Paolo Pasolini (Tradução de Cide Piquet e Davi Pessoa) |
JM Almeida
João Maurino de Almeida Filho. Bacharel em Ciências Econômicas e Ciências Jurídicas.