A inferência determinística na Justiça brasileira
22/01/2019 às 09:16 Ler na área do assinanteDo JUSS CATARINA, Portal da Justiça em Santa Catarina, de 19/01/2019, retiro o seguinte texto:
Durante a audiência de custódia de um homem preso em flagrante pela Polícia Militar em Florianópolis, portando um fuzil AR-15 e 30 munições, a magistrada homologou a prisão, mas concedeu liberdade ao acusado, mediante medidas cautelares, argumentando, entre outros pontos, que: “não há nos autos registros que demonstrem a periculosidade social efetiva e a real possibilidade de que o conduzido, solto, venha a cometer infrações penais, tão pouco há ações penais em desfavor do indiciado contatando a habitualidade criminosa.”
Minha mãe, sem curso primário completo, mas inteligência arguta, dizia: “O papel aceita tudo o que se escreve.” Aceita mesmo o mais acintoso besteirol, mesmo que metido a besta, revestido de um juridiquês macarrônico e presunçoso. É o caso em tela.
“Não há registros que demonstrem a periculosidade efetiva do conduzido”.
Ora pipocas, e a prisão em flagrante não é um REGISTRO DE FATO? E portar um AR15, com trinta munições, não é perigoso para a sociedade? Ou será que o portador estava apenas levando o seu brinquedinho de estimação a passear? E mais, se portar um AR15 armado não configura perigo, qual o sentido lógico das medidas cautelares? O despacho da certamente “douta” juíza é, neste ponto, contraditório. Outra pergunta: onde o conduzido conseguiu seu brinquedinho? Certamente não no comércio legal. Certamente o “inocente” conduzido o conseguiu de bandidos para praticar bandidagem. Não era para a douta magistrada determinar à Polícia investigar?
Nos demais pontos, o despacho continua absurdo. Vejam esta pérola de futurologia jurídica:
[Não há] “a real possibilidade de que o conduzido, solto, venha a cometer infrações penais ...”
Certamente a bola de cristal da “eminente” magistrada é uma maravilha de equipamento exotérico que lhe permite inferir a improbabilidade de o conduzido vir a usar seu AR15 de estimação para matar. Falei em inferir? Sim, inferência estatística é a ciência de se predizer, com certa probabilidade, baseados em experiência pregressa, eventos futuros.
Para a douta magistrada a única inferência que faz (e não é estatística, é mística) é de que “não há a real possibilidade de que o conduzido, solto, venha a cometer infrações penais...”.
Nota relevante: douta magistrada nem fala em PROBABILIDADE, fala em POSSIBILIDADE. Ela não é estocástica, é determinística! Não há possibilidade e pronto. De onde tirou esta certeza, isto é, como fez esta inferência determinística? Isto ela não demonstra e nem sabe, por certo. Minha mãe tinha razão: o papel aceita tudo. A capacidade dessa senhora de predizer o futuro de forma inquestionável (determinística) assusta. É mística, como já afirmei.
Para as pessoas indignadas com a decisão da eminente magistrada (eu me incluo entre elas) uma advertência: este exercício de futurologia determinística é bem mais comum do que se pensa. Principalmente entre ministros de cortes superiores, principalmente entre ministros do STF. E o fazem sempre que libertam um bandido de colarinho branco de alto coturno: solto eles não delinquirão. Ou, no linguajar da douta magistrada, “Não há a real possibilidade de o solto voltar a cometer infrações penais.”
Por concisão, cito apenas um caso visando corroborar isto que acima afirmo, mas os exemplos são muitos.
Teori Albino Zavascki, Ministro do STF, já havia, logo no início da Lava Jato, libertado o ex-Diretor de Abastecimento da Petrobrás, Paulo Roberto Costa, o “Paulinho”, segundo o tratamento carinhoso de Lula. O argumento de Teori para libertar Paulinho era de que sua liberdade “não trazia riscos às investigações da Lava Jato”, mutatis mutandis, é o que afirma a douta juíza do caso do “conduzido”.
Sergio Moro, com imensa coragem cívica, nunca antes vista ‘nessepaís’ do Juridiquês, mandou prender Paulinho do Lula de novo, mostrando que, ao contrário do que afirmara a suposta predição determinística de Teori, Paulinho livre aprontava das suas, fazendo imensas transferências bancárias no estrangeiro, no afã de suprimir os rastros do dinheiro roubado.
Dessa vez Teori engoliu a prisão de Paulinho em seco, saindo-se com esta pérola ‘jurídica’ ante os repórteres: “Não quero me precipitar”.
Isto, claro, após ter se precipitado. Foi só então que Paulinho requereu a Cooperação Premiada, dando início, com os resultados já conhecidos, ao saneamento moral do Brasil.
A inferência determinística parece uma cultura jurídica nesse país do Juridiquês.
Nada a reclamar desde que a inferência se baseie em um modelo de predição claramente construído e as decisões tomadas com base racional nos resultados daquele modelo. Mas não é assim. O magistrado, em geral, afirma categórico uma conclusão de autoridade, extraída do nada: “A liberdade de Paulinho não trazia riscos às investigações da Lava-Jato”. De onde vinha tamanha certeza, não se explicava. Magister dixit! E pronto! Ou, no caso em tela, como exarou a douta magistrada: [Não há] “a real possibilidade de que o conduzido, solto, venha a cometer infrações penais, ...”. Como chegou à conclusão de que “não há a real possibilidade...” é coisa misteriosa.
Teori voltou atrás e a Lava-Jato tomou impulso. Se alguém não jogar o presente besteirol à Lata do Lixo Jurídico do Brasil, brevemente o “conduzido” irá matar alguém. Embora, claro, isto “não tivesse a menor possibilidade real” de acontecer.
José J. de Espíndola
Engenheiro Mecânico pela UFRGS. Mestre em Ciências em Engenharia pela PUC-Rio. Doutor (Ph.D.) pelo Institute of Sound and Vibration Research (ISVR) da Universidade de Southampton, Inglaterra. Doutor Honoris Causa da UFPR. Membro Emérito do Comitê de Dinâmica da ABCM. Detentor do Prêmio Engenharia Mecânica Brasileira da ABCM. Detentor da Medalha de Reconhecimento da UFSC por Ação Pioneira na Construção da Pós-graduação. Detentor da Medalha João David Ferreira Lima, concedida pela Câmara Municipal de Florianópolis. Criador da área de Vibrações e Acústica do Programa de Pós-Graduação em engenharia Mecânica. Idealizador e criador do LVA, Laboratório de Vibrações e Acústica da UFSC. Professor Titular da UFSC, Departamento de Engenharia Mecânica, aposentado.