Sobre quotas acadêmicas e dívida social: a irresponsabilidade e a demagogia

25/12/2018 às 06:47 Ler na área do assinante

Sem dúvidas, pelos padrões éticos atuais, a escravatura é uma monstruosidade.

Mas nem sempre foi considerada assim. Abraão, o patriarca das religiões judaica, cristã e muçulmana, teve muitos servos. A mulher de Abraão, Sarai (depois Sara), quando já em idade imprópria para procriar - e sem mais crer na promessa de Deus de que daria, com o marido, uma grande geração -, cedeu a Abraão sua serva egípcia, Hagar, para que com ela ele tivesse muitos filhos. Teve um, Ismael, pai da nação árabe. Isaac, filho de Abraão com Sara, após o nascimento de Ismael, também teve muitos servos. Aliás este era o costume, e servos faziam parte da riqueza da descendência de Abraão, somando-se aos animais, terras e moedas.

Vê-se que a escravidão é coisa antiga e, naquele passado remoto, vista com naturalidade até pelo Deus de Abraão. Os gregos, que inventaram a democracia (demos + kratia, povo + poder), praticavam a escravidão. E não só estrangeiros eram escravizados. Por exemplo, os efebos serviam aos heróis olímpicos dos quatorze aos dezoito anos. Estes não tinham escolha. Eram entregues aos heróis olímpicos para servi-los, não raro pelos próprios pais (as mulheres eram consideradas sujas, impuras e, como tais, imprestáveis para satisfazer um herói olímpico!). Não era isto também uma forma de escravidão?

Os romanos fizeram escravos a rodo e de várias origens. Entre eles, alguns gregos.

A escravidão existia naturalmente entre os africanos, antes mesmo de eles serem negociados, como mercadoria ordinária, para terras americanas. Pretos africanos eram feitos escravos por pretos africanos, da mesma tribo ou de outras, e vendidos como tais.

Na realidade, os brancos não faziam escravos na África, ou faziam poucos: compravam-nos, que isto era mais fácil e seguro. Compravam negros presos e escravizados por outros negros. Não lembro isto para livrar a pele dos brancos europeus ou americanos. Certamente que comprar seres humanos escravizados e mantê-los escravos é, pelos padrões éticos atuais, uma monstruosidade. Mas isto mostra, mais uma vez, que não é correto fazer a dicotomia entre o pobre e injustiçado negro, de um lado, e o branco diabólico, de outro. Não existem santos nesta suja e trágica história.

Há um conto do francês Prosper Mérimée (1803-1870), muito a propósito dessa triste prática. Descreve as aventuras e desventuras de um respeitável chefe africano, Tamango, cujo grande negócio era precisamente caçar, prender e escravizar africanos e vendê-los, como mercadoria qualquer, a mercadores europeus e americanos. A escravidão na África ainda persiste hoje, de forma explícita, ou disfarçada. Ou não será escravidão o sequestro de meninos inocentes para lutarem em guerras fratricidas, estúpidas e sem sentido, a não ser para os interesses de algum monstro ditatorial?

Vista sob o contexto histórico, a tal “cobrança” da divida social da escravatura é absurda, hipócrita, tão difusa é sua responsabilidade. Fica muito difícil cobrar alguma coisa de alguém. Parece que ao fim e ao cabo, somos todos credores e devedores. Se, de um lado, brancos compraram pretos escravizados por outros pretos, de outro, ao fim da escravatura nas Américas, foi-lhes dado uma linguagem escrita (que não tinham na África) e a oportunidade de competirem no mercado de trabalho e no ingresso às universidades. Barak Obama é o caso mais emblemático desta história.

Parece justo alegar que os pretos não foram devidamente preparados para esta competição por aqueles que lhes outorgaram a liberdade. Mas isto é uma questão basicamente de política social de governo e não uma questão acadêmica. À universidade impõem-se os objetivos, estabelecidos desde a Idade Média, em Bologna, que são: gerar conhecimentos, preservar e sistematizar os conhecimentos gerados, difundir e aplicar os conhecimentos. Universidade é para isso! Só para isso! O resto é papo furado a serviço de ideologias da esquerda demagógica, ignorante, jurássica.

Para bem cumprir aqueles objetivos acima enunciados, a universidade precisa de bons professores pesquisadores, de administradores acadêmicos competentes, apolíticos, com mérito reconhecido.

Precisa de infraestrutura material, laboratorial e normativa rigorosa em favor da qualidade acadêmica, bem como de uma massa de alunos preparada e competente para poder entender e assimilar os conhecimentos, que se expandem continuamente e se tornam cada dia mais complexos. Essa massa de alunos precisa ter preparo intelectual adequado para digerir os cada vez mais complexos conhecimentos difundidos e ser capaz de aplica-los para o bem da sociedade - aí sim, entra o lado social da universidade - e alarga-los. E isto não se consegue deixando que alunos entrem na universidade pela porta dos fundos, uma linha de clivagem para jovens despreparados para a tarefa acima descrita, caracterizada por cotas raciais permissivas, absurdas, antiacadêmicas, antissociais e imorais.

É voz corrente, no Reino Unido, que a grande qualidade e reputação de universidades como as de Cambridge e Oxford se devem, em boa parte, à elevada qualidade intelectual dos seus alunos ingressos, tanto quanto a de seu corpo docente e laboratórios, estes dois últimos, de resto, não superiores ao de algumas outras instituições acadêmicas britânicas menos notórias. Por que é assim? Porque, sendo muito antigas e tendo um passado brilhante, a elevada reputação dessas universidades atrai os mais preparados alunos, que se submetem a um escrutínio mais rigoroso do que o usual em outras instituições universitárias, para nela entrarem. E isto gera um círculo virtuoso, que mantém a elevada e histórica reputação de Cambridge e Oxford.

Já nestas plagas tropicais, nossos ‘entendidos’ em educação (e como os temos, por Júpiter!) forçam um caminho inverso ao que historicamente seguiram as melhores instituições acadêmicas do mundo, que fatalmente descambará na redução da qualidade do ensino e, no longo prazo, na diminuição da quantidade e qualidade do conhecimento gerado.

Impõem à universidade o preço de um problema político e social gerado pela incompetência e desídia de sucessivos governos - desde a abolição da escravatura até agora -, sejam governos federais, estaduais ou municipais.

Preço político e social que a universidade só poderá pagar com o rebaixamento de seus padrões de qualidade. A imposição deste preço à universidade só é boa para governos incompetentes e demagógicos, que assim fingem uma preocupação social para com um problema que jamais tiveram e não têm. Mas assim fingindo, dão a desavisados a impressão de que a têm. Para a universidade, esta política governamental farsesca será, no longo prazo, um desastre.

Esta questão da divida social e seu pagamento por vias absurdas, como cotas raciais nas universidades, guarda semelhança com aquela outra, a da invasão e ocupação de terras alheias, como as que ocorreram no continente europeu e americano. Levada ao pé da letra a questão das dívidas históricas e sociais, a justiça se fará apenas quando os anglos e os saxões deixarem o território da velha ilha britânica, abandonando-a aos descendentes diretos dos celtas. Ou quando os descendentes de portugueses voltarem a Portugal, os de espanhóis à Espanha, os de ingleses, irlandeses, italianos, poloneses e outros abandonarem a América e o Canadá e voltarem para os países de seus antepassados. O que se quer dizer com isso é que remexer a História antiga, no afã de “fazer justiça” e reaver o status quo ante, pode ser estupidez, supina burrice ou pura demagogia.

Quando essa cobrança é feita em moeda que avilta o conceito histórico e universal de universidade (com a entrada de alunos despreparados pela porta do fundo), então atingimos o paroxismo do estapafúrdio, do irresponsável e da demagogia.

José J. de Espíndola

Engenheiro Mecânico pela UFRGS. Mestre em Ciências em Engenharia pela PUC-Rio. Doutor (Ph.D.) pelo Institute of Sound and Vibration Research (ISVR) da Universidade de Southampton, Inglaterra. Doutor Honoris Causa da UFPR. Membro Emérito do Comitê de Dinâmica da ABCM. Detentor do Prêmio Engenharia Mecânica Brasileira da ABCM. Detentor da Medalha de Reconhecimento da UFSC por Ação Pioneira na Construção da Pós-graduação. Detentor da Medalha João David Ferreira Lima, concedida pela Câmara Municipal de Florianópolis. Criador da área de Vibrações e Acústica do Programa de Pós-Graduação em engenharia Mecânica. Idealizador e criador do LVA, Laboratório de Vibrações e Acústica da UFSC. Professor Titular da UFSC, Departamento de Engenharia Mecânica, aposentado.

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