“Acredito que o estudo da cultura Cristã é o elo perdido essencial a ser suprido se a tradição da educação e cultura ocidentais deve sobreviver, pois é somente mediante esse estudo que podemos entender como a cultura ocidental veio a existir e quais são os valores fundamentais sobre os quais ela se apoia”. Christopher Dawson
É fato inconteste que o Cristianismo em geral e a Igreja Católica em particular são as visões religiosas mais atacadas e vilipendiadas da história. Nesse sentido, não surpreende que frequentemente encontremos em redes sociais, jornais, eventos, aulas, etc, ataques seja contra o Cristianismo seja contra o Catolicismo.
Qualquer fato atinente à fragilidade humana daqueles que constituem especialmente a Igreja Católica serve de “argumento” para se denegrir a Igreja Católica mesma, em uma falácia (erro lógico) tradicionalmente conhecida como ‘non sequitur’, na qual a conclusão não tem qualquer relação causal com as premissas.
Ou seja: alguns fatos isolados são tomados como premissas e a partir delas se chega a conclusões que não estão com elas relacionadas. Por exemplo, [premissa]: É fato (lamentável) que na Igreja há sacerdotes pedófilos. [conclusão]: Logo, a Igreja aprova a pedofilia e todo sacerdote é pedófilo. Em suma, trata-se um raciocínio falacioso muitíssimo usado, seja por estupidez, seja por má fé, por aqueles que pretendem denegrir especialmente a imagem da Igreja Católica. Tomam casos isolados de degeneração moral (explicada pelas ideias de ‘pecado original’ e de ‘mal moral’, aliás) para, desses casos em particular, retirarem conclusões gerais e vis sobre a Igreja e sobre o Cristianismo.
Em suma, há muitíssimos preconceitos, sobretudo contra a Igreja Católica. Mas esses preconceitos não são recentes. Uma das bases para os preconceitos contra a Igreja Católica se encontra em um livro de 1776, “Declínio e queda do Império Romano”, de Edward Gibbon, no qual ele defende a tese (comprovadamente errada) de que o Cristianismo teria causado a ruptura com o progresso ocidental começado pelos gregos e avançado pelos romanos. Foi desse preconceito que surgiu a ideia, equivocada, de que o Cristianismo colocou o Ocidente em uma “idade das trevas”. A partir daí passou-se a associar fortemente Cristianismo (especialmente a Igreja Católica) à superstição. E, claro, ainda que contra os fatos, passou-se a demonizar o Cristianismo, como se ele fosse a causa de todos os males do mundo.
Mas será mesmo assim?
Como diz uma sábia passagem bíblica, “pelo seus frutos os conhecereis”. Assim, quais são os frutos do Cristianismo?
Em primeiro lugar, vejamos alguns mitos tradicionais sobre o Cristianismo, especialmente sobre o Catolicismo.
Como não estou escrevendo uma preleção, serei sucinto.
Em primeiro lugar vamos ao clássico tema da Inquisição, inicialmente esclarecendo que a ideia de ‘heresia’ não foi criada pela Igreja, mas no século VI por Justiniano I (no Corpus Juris Civilis). Na verdade, “heresia” era uma acusação muito comum quando se queria (na política) eliminar alguém. Afinal, era o Estado a instituição que aplicava a pena capital pelo crime de heresia, e geralmente isso não ocorria por motivos religiosos, mas por conta de ardis políticos.
Dessa forma, uma das razões para a instauração (pela Igreja) de um tribunal da Inquisição foi, ao contrário do que se diz vulgarmente, frear as mortes de pessoas inocentes, algo devidamente documentado por Thomas Madden no artigo “The real Inquisition: Investigating the popular myth” (2004), no qual ele esclarece que “a inquisição não nasceu do desejo de destruir a diversidade e oprimir as pessoas; ela foi, na verdade, uma tentativa de parar com as execuções injustas. Heresia era um crime contra o Estado”. Assim, a maioria das pessoas acusadas de heresia e levadas ao tribunal da Inquisição foram absolvidas (sim, o tribunal da Inquisição salvou inúmeras pessoas da morte certa pelo Estado – que as acusava de heresia especialmente por motivos políticos).
E, seguindo autores como Edward Peter (“Inquisition”, de 1988) e Henry Kamen (“The Spanish Inquisition”, de 1997), Madden logra ainda demonstrar que foi criado inclusive um mito em torno da atuação da Igreja na “perseguição às bruxas”, um mito que parece não se dissipar facilmente, ainda que tenhamos um bibliografia fartamente documentada sobre o assunto, mostrando que não houve tal “caça às bruxas” por parte da Igreja Católica. Aliás, uma informação importante: o livro ‘Malleus maleficararum” (“Martelo das bruxas”), frequentemente usado para se acusar a Igreja Católica de ter inclusive uma espécie de “manual” expondo os métodos usados para torturar mulheres acusadas de bruxaria, foi condenado pela Igreja Católica mesma desde sua primeira publicação, tendo sido, inclusive, inserido no índice dos livros proibidos em 1490. Um dos autores foi, aliás, excomungado em virtude de sua insistência em seguir com a divulgação do livro. Mas o ponto é: o livro jamais foi usado pelo tribunal da Igreja Católica (isso é esclarecido, por exemplo, no livro “Witchcraft and Magic in Europe”, de Karen Jolly, Catharina Raudvere e Edward Peters).
E quanto às cruzadas? O professor Thomas Madden também desfez os mitos em torno das Cruzadas em três livros bem documentados, “A Concise History of the Crusades” (1999), “The Crusades: The Essencial Readings” (2002) e “The fourth Crusade” (1999), os quais nos mostram que as ‘Cruzadas’ eram consideradas, na Europa à época, uma expressão do Sumo Bem. Não apenas, isso, mesmo os muçulmanos reconheciam a nobreza e a piedade dos cristãos que lutavam nas cruzadas. Uma leitura atenta desses livros mostrará não apenas a história (documentada) das Cruzadas, mas os mitos em torno de questões como agressões, massacres, antissemitismo, indulgências, etc. Ou seja, esses livros desfazem diversos mitos que ainda vigem e que são reiteradamente usados para se atacar especialmente a Igreja Católica.
E “PELOS SEUS FRUTOS OS CONHECEREIS”
Com efeito, um dos problemas desses mitos em torno da Igreja Católica e do Cristianismo é que eles nos levam a ignorar o impacto (os “frutos”) do Cristianismo e da Igreja Católica na consolidação da civilização ocidental. Por exemplo, esquecemos-nos do papel do Cristianismo na conversão dos bárbaros e consequente resgate (e preservação) da cultura Greco-romana. Não apenas isso, e quanto à importância da vida monástica para a preservação de nossa cultura? Os primeiros monges e as primeiras freiras formavam, na Europa, uma pequeníssima elite capaz de ler e escrever. E muitos desses monges e freiras ocupavam boa parte de seu tempo preservando a cultura, copiando, a mão, os livros clássicos. Não apenas isso, eram responsáveis, também, pelo ensino do conteúdo desses livros. Que dizer do papel do Cristianismo na Renascença Carolíngia, quando – durante o governo de Carlos Magno - houve um incentivo à produção cultural em áreas como letras, artes e educação? Nesse mesmo contexto tivemos um amplo desenvolvimento da cultura, seja mediante a abertura de escolas e mosteiros, seja pela tradução e cópia de incontáveis manuscritos antigos. Sem falar na grandiosidade da arquitetura medieval. E quanto à criação, encetada pelo Cristianismo, de nossas Universidades, as quais têm sido tão vilipendiadas pela esquerda atualmente (a mesma esquerda que também ataca furiosamente o Cristianismo e a Igreja Católica), como tenho mencionado em alguns artigos aqui no Jornal da Cidade?
Em verdade, a Universidade foi um fenômeno totalmente novo na história. Não houve algo similar nem na Grécia nem em Roma. A universidade que hoje conhecemos, com suas faculdades, cursos, graus, etc, é uma herança da Idade Média cristã. A Igreja Católica, podemos afirmar categoricamente, foi a única instituição na Europa preocupada em preservar, fomentar e propagar o conhecimento. E eis outro ponto fundamental para compreendermos a grandiosidade do cristianismo e, especialmente, da Igreja Católica: Seu papel no surgimento da Revolução Científica. O “milagre” da ciência moderna e de uma concepção filosófica que elevou a razão (seu uso – teórico e prático) surgiu apenas na Europa Cristã, uma tese sobejamente esclarecida pelo filósofo da ciência Stanley jaki, bem como por Peter Van Inwagen, Alvin Plantinga, etc al. Dessa maneira, os filósofos e cientistas modernos frequentemente mantiveram uma postura compatibilista no que concerne à relação entre ciência e fé.
Na verdade, muito do avanço da ciência (a chamada “revolução científica”, que começa especialmente no século XVI, tendo Copérnico, cônego da Igreja Católica, e Galileu, assumido católico, como precursores) ocorreu precisamente porque os grandes autores da filosofia da natureza modernos mantiveram ideias oriundas da teologia judaico-cristã (e da metafísica em geral). Em verdade, a ciência moderna oferece inclusive alguns elementos para a defesa da fé teística. Como disse Peter Van Inwagen: “Foi a Europa Cristã que sustentou, promoveu e nutriu a ciência moderna”. Em vários aspectos podemos dizer que a ciência moderna é um legado do cristianismo. Basta vermos que cientistas tais quais Copérnico, Galileu, Newton, Robert Boyle, e outros, acreditavam fortemente em Deus e, portanto, em uma ordem na natureza criada por Ele. E isso é uma constatação histórica, a qual revela que a ciência moderna eclodiu a partir de cientistas comprometidos (e em acordo) com a fé teística, a qual aponta para uma realidade objetiva (natureza) regrada por leis imutáveis e cognoscíveis.
A ideia mesma de que nos é possível compreender as leis que regem o universo sugere aquilo que ficou conhecido como adequatio intellectus ad rem (“adequação do intelecto à realidade”). Ou, ainda, que nosso intelecto mantém uma espécie de harmonia com o universo, de tal forma que esse se torna compreensível para nós. Mas podemos ir além desses fatos e mencionar o papel da Igreja Católica na elaboração do direito internacional - ius gentium – ocorrido quando da descoberta dos índios (em torno da discussão acerca das disputas sobre a natureza da alma: “Teriam os índios alma”?). Muito do nosso direito (e das garantias de liberdade e justiça, por exemplo) é oriundo do Direito Canônico. E quanto ao seu papel na Economia (mediante os espanhóis da Escola de Salamanca): Os Escolásticos desenvolveram conceitos básicos de economia que trouxeram prosperidade para o Ocidente, sendo causa de uma riqueza nunca antes vista.
E o desenvolvimento da Caridade (Caritas), uma das três virtudes teologais (Fé, Esperança e Caridade): A Igreja em especial criou quase todas as Instituições Caritativas ao longo da história, como orfanatos, hospitais, asilos, etc. mesmo liberais como Locke, Mises, Milton Friedman, et al, reconhecem que a Caridade funcionava melhor quando era responsabilidade da Igreja (ao invés de estar, como agora, sob os péssimos e caros cuidados do Estado). E sobre a fundamentação da Moralidade? O Cristianismo assentou as bases da ideia de ‘direitos humanos’ (inalienáveis), ‘direito natural’ e ‘dignidade da pessoa humana’. Especialmente da Igreja veio a defesa da “sacralidade da vida”, de todas as vidas em todos os seus momentos, desde a concepção até a velhice, incluindo inclusive os pagãos. Com efeito, com seu advento e desenvolvimento o Cristianismo incorporou e elevou a tradição recebida dos gregos, dos judeus, dos romanos. Cabe ainda notar que foi o Cristianismo que propôs a laicidade, ou seja, a separação entre religião e estado. Isso já está assentado inclusive no texto bíblico.
A história é conhecida: em uma tentativa de armar uma cilada para Jesus lhe é colocada a questão: É lícito dar o tributo a César ou não? A essa questão ele responde: “A César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. Temos, aqui, a primeira defesa de um Estado laico, reiterada em outras passagens: “O meu reino não é deste mundo”. Portanto, a separação entre Religião e Estado (laicidade) sempre foi uma exigência da tradição cristã em geral e do Catolicismo em particular. O Édito de Milão, a Querela das Investiduras, por exemplo, mostram o esforço dos cristãos para manter separados os planos secular e religioso. Essa reivindicação, tão na moda atualmente, já é conhecida dos cristãos há uns 2000 anos. A Doutrina Social da Igreja e o Concílio Vaticano II, por exemplo, consideram a laicidade um “patrimônio da civilização”, uma vez que ela assegura a liberdade religiosa e o diálogo (já observaram que democracia, liberdades, direitos, etc, floresceram em culturas cristãs? Pois é. Não foi por acaso). Assim, a laicidade (que difere totalmente do laicismo das posturas anticristãs) desde o início foi uma reivindicação da Igreja, a qual pretendia separar religião e política.
Por fim, um influente historiador que resgatou a importância do Cristianismo na consolidação da civilização Ocidental foi Christopher Dawson, autor da frase que usei ao início desse texto. A leitura de sua obra é importante não apenas porque nela compreendemos nossa herança enquanto civilização, mas também porque percebemos o que perdemos quando rejeitamos nossa herança. A tese de Dawson em sua erudita obra é: “a força formadora do Ocidente é o Cristianismo”. Foi o Cristianismo que transformou uma Europa bárbara em um centro cultural e científico. No entanto, especialmente no século XX se desenvolveu um espírito antiocidental e anticristão concretizado especialmente no pós-modernismo. Com efeito, uma das ideias centrais de Dawson é a seguinte: “A religião é a alma da cultura, sendo que a sociedade que perde suas raízes espirituais é uma sociedade moribunda, independentemente de quão próspera ela possa parecer externamente”.
A rejeição e o esquecimento dos fundamentos de nossa civilização conduzem inevitavelmente à decadência dessa mesma civilização. Foi o Cristianismo, por exemplo, que “ressuscitou” um agonizante império romano. Os livros de Dawson lidam sobretudo com a vida das civilizações. A ideia que acompanha suas obras é a seguinte: A interação entre religião (Cristianismo) e cultura teve como resultado o que entendemos hoje como civilização. A religião, ou religiosidade, é um aspecto “dinâmico” (vital) das culturas (seria sua “alma”). Adoração, oração, lei moral (decálogo, por exemplo), ritos e sacrifícios são comuns a todas as culturas e, de alguma maneira, integram a humanidade a uma fonte de sentido. Segundo Dawson, quando a religião, ou religiosidade, é retirada, os fundamentos colapsam. Daí surge aqueles que Dawson chama de “bárbaros do intelecto”, ou seja, os niilistas, os quais nada mais são do que os bárbaros que querem destruir a civilização ocidental mediante a destruição de seus pilares, dentre os quais estão o Cristianismo, a Igreja Católica, as Universidades, etc.
Aliás, mesmo um ateu (desde que informado e honesto intelectualmente, é claro) reconhece os fatos acima descritos, o que aponta para a importância (e a verdade) seja do Cristianismo seja da Igreja Católica. Em um livro intitulado “An Atheist Defends Religion” (2009) Bruce Sheiman (um ateu) argumenta em defesa da religião pelas razões que expus acima. Independentemente de se Deus existe (algo em que Sheiman não acredita), é possível reconhecer sua importância (cultural e civilizatória) fundamental. A tese central de Sheiman é que a religião é incomensuravelmente benéfica para a humanidade. E isso independentemente de se Deus existe ou não. Segundo ele, o melhor argumento em defesa da religião reside em mostrar que ela é um fenômeno cultural fundamental. Como ele enfatiza, o ponto é que a “religião fornece uma combinação de benefícios psicológicos, emocionais, morais, comunitários, existenciais e, mesmo, de saúde física, que nenhuma outra instituição pode reproduzir”.
Do ponto de vista de Sheiman, a religião serve a um fim utilitarista: oferecer “o maior bem para o maior número de pessoas”. De um ponto de vista econômico, por exemplo, a “religião oferece benefícios líquidos positivos que nenhuma outra instituição sequer chega perto de corresponder”. Por que, ele pergunta, a religião é “tão cativante, enriquecedora, esclarecedora, causa de fortalecimento e arrebatadora?” Para responder a essa questão o livro de Sheiman é dividido em capítulos que visam demonstrar algumas funções da religião, como seu papel na busca pelo sentido da vida, seu papel na solidificação de uma moralidade que nos assegurou a prosperidade, seus benefícios psicológicos e sua força para o progresso, o que inclui o desenvolvimento dos direitos humanos, de uma ética universal e de “morais absolutos”, etc. Como ele nos diz, chegamos à civilização “em grande medida por causa da religião, e não apesar dela”. Noutros termos, ainda segundo ele, a religião é “a maior força para o bem no mundo”, ela “é mais transformadora do que reacionária”.
Em suma, mesmo ateus (quando honestos e bem informados) reconhecem que, do ponto de vista da sociologia da religião, o Cristianismo desde suas origens ajudou as pessoas a viverem vidas mais realizadas, vidas com sentido. Não apenas isso, seus benefícios sociais são incalculáveis, o que pode ser demonstrado inclusive empiricamente. Diante disso, e em defesa da civilização ocidental, devemos enfrentar as ameaças que pretendem fazer colapsar os alicerces da civilização ocidental, algo presente na maioria das críticas tanto ao Cristianismo quanto à Igreja Católica.
(Texto de Carlos Adriano Ferraz. Graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com estágio doutoral na State University of New York (SUNY). Foi Professor Visitante na Universidade Harvard (2010). Atualmente é professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) na graduação e no Programa de Pós-Graduação em Filosofia, no qual orienta dissertações e teses com foco em ética, filosofia política e filosofia do direito).