O governador, o sniper e o terrorista “inofensivo”
03/11/2018 às 17:54 Ler na área do assinanteEste breve artigo visa a abordar a questão jurídico-penal envolvida na declaração do governador eleito do Estado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, no sentido de que atiradores de elite (snipers) terão o respaldo do governo para abaterem criminosos que estejam portando ostensivamente armas de uso exclusivo das Forças Armadas, como fuzis.
Em que pese notoriamente adequada à lei, à realidade e ao senso comum, tal declaração parece ter deixado perplexos alguns “especialistas”, notadamente do jornalismo e da área jurídica.
A seção brasileira da Anistia Internacional, por exemplo, reagiu de imediato afirmando que a iniciativa do governador eleito “afronta a legislação brasileira”, afirmação daquelas que se lançam com a máxima velocidade para, repetida tantas vezes quantas forem possíveis, tornar-se uma “verdade” inquestionável antes que se proponham estudos mais sérios e honestos acerca do tema, estratégia costumeira entre “defensores” incondicionais de “direitos humanos” daqueles que dedicam a vida a aterrorizar seres humanos.
Como as soluções pré-fabricadas por burocratas de plantão não nos satisfazem, vejamos o que diz a lei penal e como a medida proposta pelo governador eleito a ela se coaduna.
A questão gira em torno de uma das causas excludentes da ilicitude do fato, e consequentemente de seu caráter criminoso, previstas na lei, especificamente no art. 25 do Código Penal.
Trata-se da chamada legítima defesa.
O art. 25 do Código Penal assim dispõe:
“Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.”
Pois bem.
Quando um policial abate um criminoso durante um confronto armado, não há a menor dúvida de que atua sob o manto da legítima defesa (própria), porque age para repelir uma injusta agressão atual contra si. Neste caso, também age acobertado pela descriminante do estrito cumprimento do dever legal (art. 23, III, do Código Penal), uma vez que tem o dever funcional de fazer cessar a ação criminosa, protegendo assim a sociedade.
O suposto problema – absolutamente irreal, mas incrivelmente imaginado por aqueles que se escandalizaram com o anúncio do governador eleito – surgiria quando o criminoso fosse abatido “apenas” por estar portando um fuzil ostensivamente, em pleno meio urbano, mas não propriamente em combate com as forças policiais.
Parece que a fértil imaginação dos escandalizados alcança um nível tal que lhes permite cogitar a hipótese de um cidadão, trabalhador, honesto e cumpridor da lei adquirir um fuzil, sabe-se lá por que meios, e empunhá-lo, pública e ostensivamente, apenas por diversão, sem a menor intenção de ferir ou matar alguém.
Loucuras à parte, analisemos a questão posta à luz da legislação vigente.
Para melhor compreensão, fazem-se necessários alguns esclarecimentos a respeito do conceito de agressão iminente, bem como do que seria o uso moderado dos meios necessários, mencionado no aludido art. 25 do Código Penal.
O caráter iminente de uma agressão não se verifica exclusivamente a partir do aspecto temporal. Agressão iminente não é simplesmente aquela que está prestes a acontecer. Conceitos jurídicos não decorrem de meras consultas a dicionários. Antes, devem aproximar-se ao máximo da finalidade para a qual a lei foi concebida e do sentido e alcance indicados pela interpretação sistemática de seus termos.
No caso da legítima defesa, como a finalidade da ação daquele que se defende é repelir, isto é, afastar a agressão, impedir que ela se concretize, deve-se entender que agressão iminente é aquela que reúne, de acordo com os sinais externos inequívocos, todas as condições em potencial para se concretizar a qualquer momento.
Na hipótese especificamente cogitada, há ainda um fator importantíssimo a ser considerado: além de ser evidente que um criminoso empunhando um fuzil em plena cidade represente uma ameaça constante de agressão a um número indeterminado de pessoas, capaz de se concretizar a qualquer momento, mais evidente ainda é que, se o agente policial praticar qualquer ação legítima tendente a detê-lo (o que está obrigado a fazer por dever funcional, sob pena de prevaricação), será ele, obviamente, o alvo da agressão.
Portanto, não há dúvida alguma de que o policial, em casos tais, está diante de uma agressão iminente.
No que tange ao emprego dos meios necessários, é tranquilo o entendimento de que estes consistem nos recursos de que disponha o autor da ação legítima para, com eficácia, fazer cessar aquela agressão iminente. No caso em análise, o sniper disporia de uma arma de logo alcance e de precisão (fuzil), única capaz de atingir tal objetivo, já que qualquer aproximação do criminoso que empunha ostensivamente também um fuzil colocaria em risco a vida daqueles que apenas cumprem seu dever funcional.
Por isso é que também a hipótese da “prisão do criminoso para que responda nos termos da lei” pelo crime por ele praticado, isto é, pelo porte ilegal de arma de fogo de uso restrito (art. 16 da Lei 10.826/03) – hipótese que talvez ocorra na imaginação daqueles que se indignaram com a decisão do governador de preservar a vida de policiais em detrimento da de terroristas – revela-se absolutamente implausível. Como se aproximar e efetuar a prisão do criminoso que empunha um fuzil justamente para atingir policiais a centenas de metros de distância e não ser preso?
Trata-se, pois, de mais uma hipótese que só existe no imaginário de alguns, obviamente divorciada da realidade.
Quanto à moderação no emprego desse único meio eficaz, pelo que foi exposto até aqui, parecem desnecessárias maiores considerações. A moderação está indissociavelmente vinculada à necessidade do meio empregado (“meios necessários”). O que a lei quer evitar, evidentemente, é que a intensidade da ação defensiva não vá além do suficiente para fazer cessar a agressão, o que logicamente pressupõe alguma proporcionalidade, ainda que não matematicamente exata. No caso, é mais do que claro que o disparo à distância efetuado por sniper (meio necessário, como já visto) para repelir a agressão iminente (criminoso que ameaça a sociedade e a legítima ação policial empunhando um fuzil) não iria nada além do suficiente para fazer cessar a agressão.
Portanto, por mais que se incomodem os adeptos da ideia de que a melhor forma de combater o crime é não combatê-lo, a corajosa iniciativa declarada pelo governador eleito, caso colocada em prática, terá pleno respaldo legal.
Felizmente, posições descoladas da realidade, juridicamente infundadas e desprovidas de qualquer utilidade prática, senão a de opor toda ordem de obstáculos à ação do Estado na defesa da sociedade ante o crime, são cada vez mais escassas.
Já são repudiadas pela sociedade que não suporta mais assistir a burocratas irresponsáveis fazendo malabarismo para transformar verdadeiros terroristas em vítimas e criminalizar ações legítimas voltadas justamente a combatê-los.
E devem ser veementemente refutadas no âmbito judicial, do qual urge expurgar a falácia de que o Direito Penal existe para proteger o indivíduo infrator da lei dos presumíveis abusos do Estado no exercício do direito de punir.
Muito pelo contrário, ele existe e sempre existiu para proteger a sociedade ordeira contra indivíduos inescrupulosos e perigosos, como o terrorista que, pública e ostensivamente, empunha um fuzil para intimidar as forças policiais e toda a coletividade cumpridora da lei que àquelas incumbe proteger.
(Texto de Giovani Guimarães)
Publicado originalmente no blog Movimento Magistrados para a Justiça