Resposta aos Donos da História no Manifesto “Democracia Sim”

24/09/2018 às 20:15 Ler na área do assinante

Ajuda-me em primeiro lugar, oh Musa, a cantar os grandes feitos da minha psiquiatra para que eu possa escrever sob influência das Graças e não das Fúrias. São elas, as Fúrias, que me empurram em direção às lembranças, horrores e desafetos, às mágoas que porventura possam me impedir de enxergar a floresta, uma vez que esteja eu enfeitiçado pela árvore do nojo e da raiva.

Escrevo como um pobre discípulo de Esculápio que tenta ridiculamente imitar o estilo dos grandes poetas nas inesquecíveis epopeias do processo civilizatório.

Não tenho alternativa! A mim me toca a tarefa auto imposta de responder ao “melhor do que existe no Brasil” em termos de “arte” e de “cultura” - essa “elite”, esta “nata” da nossa sociedade comuno-tupiniquim, que elaborou o texto de “Democracia Sim” e que só tinha, até agora, a hashtag #LeiRouanetNao como resposta.

Meu trabalho há de ser gigantesco porque não escrevo somente contra quem tem uma ideia de “democracia”, “autoritarismo” e “processo civilizatório” diferente da minha e dos demais brasileiros – escrevo contra quem tem a ÚNICA ideia e o discurso ÚNICO a ser validado como “verdadeiro” na grande mídia sobre a História Recente do Brasil.

A “democracia” daqueles que assinam o Manifesto não começa no discurso de Péricles em Homenagem aos Mortos na Guerra do Peloponeso; ela nasce no Regime de Terror da França de 1793.

Autoritarismo não se encontra na Tomada do Palácio de Inverno em 1917, nos filhos (ainda crianças) do Czar fuzilados por ordem de Lenin, no Grande Salto Adiante de 1958, nem na chegada do Khmer Vermelho em 1975; ele só vem com a Marcha da Família, com o AI-5 e o Impeachment de Dilma Rousseff. A “ameaça ao processo civilizatório” não se encontrava no Aeroporto de Guararapes em 1966, no assassinato de Mário Kozel Filho, no sequestro de Charles Elbrick, na degola do soldado Valdeci em Porto Alegre, nem na morte do cinegrafista Santiago Andrade – é a possibilidade de eleger Jair Bolsonaro que vai destruir toda “democracia” que só começou no Brasil depois de 1985.

A falta de caridade, o descaso por toda dor e sofrimento, a própria sequência histórica do Pecado Original e da Queda do Paraíso não está na Crucificação; ela só nasce quando Chico Buarque é preso pelo DOPS e Marielle Franco é assassinada.

“Exaura”, como dizem os juízes brasileiros em suas sentenças, de tudo aquilo que li em “Democracia Sim” um único sentimento, uma única mensagem – são aqueles que assinam e aqueles que concordam com o que está ali que tem o “direito” de dizer aos demais brasileiros qual é o verdadeiro “sentido da História” - Ah, meu Deus, que orgulho Hegel teria deles!

O texto não é uma “defesa da Democracia”; é um aviso para todos os leitores de que “Democracia” é aquilo que será definido ali!

O respeito pelas “diferenças”, a defesa da “diversidade”, vem de gente que chama Pelotas de “cidade exportadora de veados” e pede que “mulheres do grelo duro” façam a defesa do Partido em Brasília. A repulsão, o nojo do racismo, vem daqueles que visitam a África e dizem: “nossa...isso aqui é tão limpinho que nem parece a África!”

A refutação do nazismo, o desprezo pelo fascismo daqueles que assinam “Democracia Sim” está nos abaixo assinados em apoio à Fome da Venezuela, nas manifestações de apreço pelas crianças que trabalham nas minas da Coreia do Norte e no Delírio Religioso do Iran. A preocupação contra a “erosão das instituições democráticas” e o “colapso do sistema político” não está no Mensalão, no Petrolão e no Eletrolão…ela não se faz presente no aparelhamento político do STF, das Universidades, Sindicatos e Igrejas. Ela não explode naquele junho de 2013 que nada mais era do que uma tentativa frustrada de acelerar a “venezuelização” do Brasil. Não, nada disso! Ela só começa depois que Bolsonaro briga com Maria do Rosário e o General Mourão fala em “aproximações sucessivas”.

O respeito pelos refugiados e a luta contra “xenofobia” está presente na deportação dos boxeadores cubanos Guillermo Rigondeaux e Erislandy Lara que foram entregues por Tarso Genro ao Regime de Fidel Castro durante os Jogos Panamericanos do Rio de Janeiro em 2007.

A “desconstrução da herança humanista” não está nas letras de Mc Carol e Jojô Todinho, ela não vem com o Kit Gay nas escolas nem com criança tocando homem nu em São Paulo – ela só vem com as escolas militares, com o fim do Estatuto do Desarmamento e do Ministério da “Cultura”.

A pluralidade, o respeito pela diferença e pelo espaço público ficou clara na maneira como foram tratados os médicos exonerados, professores espancados e policiais brasileiros mortos.

Os hospitais destruídos, as escolas caindo, as delegacias lotadas de presos, mais de 60.000 assassinatos por ano, doentes morrendo nas UPAS e alunos agredindo professores: tudo isso é a expressão máxima da noção de “democracia” de quem assina o manifesto.

No manifesto da “Democracia Sim”, a melhor comparação com Jair Bolsonaro vem da lembrança de um alcoolista com traços esquizofrênicos que renunciou à Presidência em função das “forças ocultas” ou de um playboy nordestino viciado em cocaína, que confiscou as economias dos brasileiros e fazia rituais de magia negra em Brasília (segundo a mulher que foi sua esposa) – esse foi derrubado por causa de um automóvel “Elba”.

Quando publicou “A Rebelião das Massas” em 1929, José Ortega y Gasset disse que “dentro de pouco tempo se ouvirá um grito formidável que se elevará do planeta como uivos de inumeráveis cães, até as estrelas, pedindo alguém e algo que mande, que imponha uma tarefa ou obrigação.”

No momento em que escrevo o Brasil inteiro “uiva desesperadamente” e já não acredita nem obedece mais àqueles que assinaram “Democracia Sim”.

Milton Pires

Médico cardiologista em Porto Alegre

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