Um caso de corrupção eleitoral em Corumbá

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Desde que cheguei ao antigo Mato Grosso, contratado como professor no Centro Pedagógico de Corumbá, uma das unidades da antiga Universidade Estadual de Mato Grosso, ouvi reiteradas vezes uma história que, apesar de verdadeira, parecia ser fantasiosa e até cinematográfica. Foi um dos casos mais pitorescos de corrupção eleitoral de que se tem notícia e fico a pensar que os descaminhos e as fraudes ocorridas neste país são mais antigos do que se imagina. 

O fato ocorreu nas eleições de 15 de novembro de 1966, durante uma ferrenha disputa eleitoral pela prefeitura municipal de Corumbá. Em plena ditadura militar, quando se alardeava o combate à corrupção, os dois partidos nacionais, ARENA (Aliança Renovadora Nacional) e MDB (Movimento Democrático Brasileiro),

digladiaram-se na cidade pelo controle do executivo municipal. É interessante destacar que, como partidos consentidos pela ditadura, as duas agremiações eram proibidas de inserir em suas respectivas siglas a palavra “partido”. Somente mais tarde o município foi considerado área de nacional e seu prefeito passou a ser nomeado pela ditadura militar.

Nessa disputa eleitoral de 66 circulou o mirabolante caso das urnas do Leque, local onde funcionava um posto público municipal do mesmo nome, em pleno pantanal da Nhecolândia. Uma das razões dessas urnas terem ficado famosas é que o seu conteúdo foi decisivo para a eleição do prefeito de Corumbá. Por curiosidade própria de historiador, fui colhendo ao longo do tempo diversos depoimentos de antigos moradores da cidade sobre a estratégia fraudulenta supostamente utilizada pelos emissários da ARENA para obter os votos necessários à vitória do seu candidato.

Depois de muitos anos, encontrei informações preciosas em pesquisas de jornais que se encontram no arquivo da Fundação Barbosa Rodrigues, em Campo Grande. Foi no jornal A Luta Matogrossense, de 31 de janeiro de 1967, que li uma transcrição da petição do MDB à Justiça Eleitoral sobre a fraude e a corrupção descarada e inacreditável ocorridas na 41ª e 47ª secções que funcionaram naquele posto, incluídas na 7ª. Zona Eleitoral de Corumbá.

Segundo a petição emedebista publicada naquele jornal, houve “falsificações aberrantes e escandalosas de assinaturas de eleitores que não estiveram presentes ao local de votação” e como comprovação cita nomes cujas assinaturas estavam na lista de votantes, apesar de estarem ausentes no pleito. Outros nomes, também citados na petição, referiam-se a eleitores incluídos nestas secções, mas que comprovadamente votaram em Aquidauana e em Campo Grande. Assim, o documento afirma ainda que “de modo a não admitir nenhuma dúvida, presume que alguém MAIS SABIDO que nós votou por todos eles”. Finalizando o documento, segundo os emedebistas, “além dos eleitores que enumeramos, muitos daqueles que votaram no Posto Leque não o fizeram com as próprias mãos, pois são deveras diferentes, sem a mínima semelhança às assinaturas nas folhas de votação”.

O mais curioso de tudo isso, foi que “os responsáveis pela Mesa Receptora de votos não permitiram que o eleitor colocasse o seu voto na urna, sob alegação de que faltava assinatura de um dos mesários e por isso deveria ser colocado em um envelope situado sobre a mesa, para posteriormente ser introduzido na urna pelos membros da própria mesa”. O fato mais contundente foi que os resultados das duas urnas não apresentaram nenhum voto nulo, nem tampouco em branco. Além disso, há muitas outras evidências sobre os tortuosos caminhos percorridos pelas urnas do Leque.

A despeito dos tempos de censura e de arbítrio vividos na época, houve uma perplexa constatação: como tudo isso aconteceu “à luz do dia”? Como foi possível não ter aparecido nem o voto do representante do MDB numa das urnas do Leque? De fato, os votos dessas urnas deram, justamente, a vitória ao candidato da ARENA. Por fim, o mandato deste prefeito peimentadas pelas reminiscências de alguns cidadãos corumbaenses, diga-se permaneceu subjudice durante quatro anos e somente nos seus estertores foi decidida pela justiça eleitoral a vitória do MDB. Aí, “Inês era morta” e o candidato do MDB não pode assumir o cargo, de fato e de direito.

As memórias relatadas sobre essa votação de 66 em Corumbá dão conta de detalhes incríveis, que mais parecem anedotário político. Teria ocorrido, estrategicamente, uma primeira providência dos manipuladores de votos no Leque que foi capinar todo o mato existente no entorno do posto, num raio aproximado de 100 metros. Depois, o almoço servido aos mesários teria provocado (ninguém soube explicar como) um incômodo desarranjo intestinal no representante do MDB. Diante de reiteradas crises de aperto, o coitado corria para aliviar-se tendo que percorrer mais de 100 metros até encontrar o refúgio discreto dos matos mais altos. Era nesse hiato que tudo acontecia e se dava o misterioso fenômeno de mutação dos votos. Infelizmente, essas particularidades, uma estratégia criativa e inusitada, não foram registradas nos anais da justiça eleitoral.

No final da história, não se desvendou inteiramente o mistério das urnas do Leque. Mas que aconteceu, aconteceu.

Valmir Batista Corrêa

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Valmir Batista Corrêa

É professor titular aposentado de História do Brasil da UFMS, com mestrado e doutorado pela USP. Pesquisador de História Regional, tem uma vasta produção historiográfica. É sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de MT, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de MS e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.

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